Diluida remanescencia de um culto velho como a humanidade,
oriundo, talvez, da India enigmática e misteriosa, a hidrolatria, é a crença na
Sereia e na Mãe d’Água, confundidas geralmente as duas entidades fictícias,
vulgaríssima entre as nossas populações justafluviaes e marítimas, e
notadamente arraigada entre os pescadores (as sereias, segundo hoje se
representam, metade mulher e metade peixe são um mito atlântico moderno,
diz-nos João Ribeiro. As da mitologia helenica eram metade mulher e metade
peixe). No Reconcavo, onde quer que
exista um regato, uma fonte, ahi está a Mãe d’Água, de basta e fulva cabeleira,
alisando-a ao sol com pente de ouro. Por seu turno, os africanos, outrora, e os
que lhe herdaram os mitos, hoje em dia, acreditavam e acreditam igualmente, sem
vacilação, na gente do fundo, que são aqueles dois seres imaginários. Ha
candomblés que são dedicados exclusivamente ás deusas personificadoras do
elemento líquido. No Maranhão tem
esta crendice, tambem, os povos dos terreiros mina (negros mina, ou da Costa da
Mina), ou irmandade de Santa Bárbara, que são as denominações irrogadas ás
assembléas dos adeptos do feiticismo africano. O índio da Amazonia crê na existencia da Iara, mas não lhe rende culto.
Os pescadores, de
baleia domiciliados nas povoações da Ponta
d’Areia, Amoreiras, Gameleira, e outras da ilha de Itaparica, do mesmo modo
que os do litoral da cidade, nas vizinhanças da Barra; os de xaréo, das
armações da costa atlantica, entre o Rio
Vermelho e Itapoã; e os demais da
Barra e do Rio Vermelho, celebravam com singular aparato a festa da Mãe d’Água,
suplicando á undícula deidade que lhes proporcionasse abundancia do cetáceo,
que lhes desse peixe á ufa. Ao mesmo tempo mandavam celebrar missas votivas,
especialmente a Nossa Senhora, e realizavam romarias às igrejas das Candeias, do Bonfim, de Montserrat, e de Santo Antonio da
Barra, implorando á Potestade Divina que os livrasse das iras do oceano,
dos azares da profissão.
Esta festa, - vou falar no indicativo presente, porque ela
inda não desapareceu inteiramente, - consta principalmente dos presentes á Mãe
d’Água: frascos de perfume, banhas aromáticas, sabonetes, fitas, espelhinhos,
pentes, maços de grampos, e o mais, que, acomodados em vasilhas de barro,
novas, ataviadas de flores e laçarotes de papel de seda, se deitam ao mar, na
meia-travessa da bahia, ou seja no leito da corrente que dela sae para o
Atlantico, e são conduzidos em barcos e saveiros embandeirados, ao som de
instrumentos africanos e do espocar de foguetes. Antes disso e depois disso, um
samba, um batuque arreliento,
arrojado, que se prolonga por horas sem conto. E aguardente como água. Claro está que só se utilizam da
meia-travessa para receptáculo dos presentes os pescadores ribeirinhos da
bahia. Os outros vão a pontos adrede elegidos, em pleno oceano.
Nos tres supracitados lugares de Itaparica ainda está em uso
a festa da Mãe d’Água, no dia de Nossa
Senhora das Candeias, comumente mas sem a animação de d’antanho.
Tradicionalista apaixonado, tive oportunidade, pêlo qual me dou parabens, de
assistil-a da Ponta d’Areia, em 2 de fevereiro
de 1929.
Os pescadores do Rio Vermelho tambem fazem ainda a festa dos
presentes, em fevereiro. No corrente ano efectuaram-na, mui modestamente, na
segunda quinzena do referido mez. Os da Barra, penso que já a esqueceram. Nas
armações de pesca de xaréo entre a Lagoa e o lugar propriamente dito Armação,
essa exteriorização do culto á fabulosa divindade permanece igualmente
amortecido. Tão ostentosa que foi outrora! A ponto de certo proprietário de
redes de xaréo, nessa costa, presentear anualmente a dona do mar com uma
escrava viva, negrinha ou mulatinha nova, que atirava ás ondas atada de pés e
mãos!
A mais pomposa festa dedicada á Mãe d’Água, - Iemanjá, segundo os africanos, - nesta capital, era a
que a gente de candomblé efectuava no terceiro domingo de dezembro, em
Itapagipe, defronte do arrasado forte de São Bartolomeu. Era uma folia de
estrondo, durante quinze dias seguidos, e comparecendo á mesma passante de dois
mil africanos e creoulos dos dois sexos. Todos os paes e mães de santo, ou de
terreiro, da Bahia, lá estavam, aqueles, segundo Manoel Querino (A Bahia de
Outr’ora, ed. De 1922), muito lordes, exibindo chapéos do Chile, ou de castor,
brilhantes em aneis e alfinetes de gravata, correntões e relógios de ouro; e
essas, quebrando sedas e gorgurões, carregavam quilos de balangandáns,
pulseiras e cordões de fino metal. Tambem atiravam presentes na meia-travessa,
constando, além do que já apontei, de comidas preparadas com azeite de dendê, e
carneiros e galináceos préviamente sacrificados, e também vivos, como o faziam
igualmente os pescadores de Itaparica, em relação a estes ultimos.
Os candombléseiros do
Gantois, da Mata Escura, do Engenho Velho, do Bôgum, do Pauzerré, e outros
lugares cercãos, iam botar os presentes no Dique, durante a festança anual
da rainha das águas. E, por fim, as lavadeiras da mais que centenária Fonte da Vovó, á rua da Vala e defronte do
bêco do Funil, que alcancei sombrada por uma gameleira ramulhada, e
frequentada por dezenas daquelas mulheres, não sei em que altura do mez de
janeiro, promoviam a festança em honra da sereia protectora do manancial, para
que o conservasse sempre abundoso. Durava a pagodeira dois, tres dias, com incrivel fartura de comidas azeitadas e apimentadas, dornas
de aguardente, um samba ininterrupto e, lá para tarde da
noite, - dado que o pagode atraia uma creoulada atrevida e turbulente, -
bordoada de criar bicho. Tambem davam presentes á sereia; agora, onde os iam
botar, não nei.
Veja-se bem como a crença na ficção oriental, emigrando
possivelmente das margens do Ganges sagrado, perigrinando pêla Grécia imortal,
e pêla velha Roma gloriosa, sintetizada em brejeiras ninfas e enganadoras
sirehas, veio encorporar-se á nossa mítica, escalando pêlo continente chamita,
e dramatizando-se, afinal, na orgia da Fonte da Vovó, e no candomblé de
Itapagipe.
Até que, enfim, vou chegar onde queria, depois de haver
impingido semelhante lengalenga ao próximo. Corre entre os pescadores do Rio
Vermelho a seguinte tradição.
Existia ahi, em dias bem longe idos (em 1803 o Mosteiro de São
Bento possuia no Rio Vermelho “um porto da armação da pescaria de xaréo” que
lhe foi legado por Fr. Agostinho de São Gonçalo), uma rendosa armação de pesca
de xaréo, o saboroso peixe tão estimado da gente pobre, e, outrora, tão ao
alcance da sua magra algibeira. Quando era tempo do pescado, as redes vinham em
termo de se romper. Um assombro. Os homens do pequeno arrebalde viviam
endinheirados. O dono da armação, nem se fala. Já estava podre de rico. Certo
dia, nas malhas de uma das redes lançadas ao mar, que era benta, como se usava
geralmente, veio enleiada uma sereia. O proprietário do aparelho, desejando viver
em paz com a gente de debaixo d’água, fel-a soltar imediatamente. Decorreram
anos. E o xaréo sempre a pontapés. Outro era o dono da armação, quando, pela
segunda vez, tornaram as redes a pescar uma sereia. Que fez o desabusado
sujeito? Depois de renhida luta, conseguiu agarral-a, levando-a á igreja do
povoado. Não sei se á extinta capela de São Gonçalo, ou á atual igreja de Sant’Ana.
Divergem os narradores da tradição. Celebrava-se a missa, na ocasião. A sereia,
cabiabaixa, envergonhada, por se ver no meio dos humanos, o formoso rosto e os
rijos seios cobertosd com a opulenta cabeleira, chorava em termo de se acabar.
Assim permaneceu no templo, sustentando-a dois pescadores pêlas axilas, por que
se mantivesse erecta, até que, terminada a cerimonia, soltaram-na á beira-mar.
Desde esse dia, nunca mais se pegou um xaréo, para remédio,
nas águas do porto de Sant’Ana do Rio Vermelho, apesar das oferendas que os
pescadores do lugar jamais deixaram de ir levar anualmente á Mãe d’Água.
SILVA CAMPOS. João da. Por que não se pescam mais xaréos no
Rio Vermelho. In: _____. Tradições
Bahianas – Separata da Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia nº
56, 1930. Bahia: Secção Graphica da Escola de Aprendizes Artífices, 1930,
p. 63-67.
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