segunda-feira, 20 de julho de 2015

Silva Campos, 1930: Por que não se pescam mais xaréos no Rio Vermelho (grifo nosso)...

Diluida remanescencia de um culto velho como a humanidade, oriundo, talvez, da India enigmática e misteriosa, a hidrolatria, é a crença na Sereia e na Mãe d’Água, confundidas geralmente as duas entidades fictícias, vulgaríssima entre as nossas populações justafluviaes e marítimas, e notadamente arraigada entre os pescadores (as sereias, segundo hoje se representam, metade mulher e metade peixe são um mito atlântico moderno, diz-nos João Ribeiro. As da mitologia helenica eram metade mulher e metade peixe). No Reconcavo, onde quer que exista um regato, uma fonte, ahi está a Mãe d’Água, de basta e fulva cabeleira, alisando-a ao sol com pente de ouro. Por seu turno, os africanos, outrora, e os que lhe herdaram os mitos, hoje em dia, acreditavam e acreditam igualmente, sem vacilação, na gente do fundo, que são aqueles dois seres imaginários. Ha candomblés que são dedicados exclusivamente ás deusas personificadoras do elemento líquido. No Maranhão tem esta crendice, tambem, os povos dos terreiros mina (negros mina, ou da Costa da Mina), ou irmandade de Santa Bárbara, que são as denominações irrogadas ás assembléas dos adeptos do feiticismo africano. O índio da Amazonia crê na existencia da Iara, mas não lhe rende culto.

Os pescadores, de baleia domiciliados nas povoações da Ponta d’Areia, Amoreiras, Gameleira, e outras da ilha de Itaparica, do mesmo modo que os do litoral da cidade, nas vizinhanças da Barra; os de xaréo, das armações da costa atlantica, entre o Rio Vermelho e Itapoã; e os demais da Barra e do Rio Vermelho, celebravam com singular aparato a festa da Mãe d’Água, suplicando á undícula deidade que lhes proporcionasse abundancia do cetáceo, que lhes desse peixe á ufa. Ao mesmo tempo mandavam celebrar missas votivas, especialmente a Nossa Senhora, e realizavam romarias às igrejas das Candeias, do Bonfim, de Montserrat, e de Santo Antonio da Barra, implorando á Potestade Divina que os livrasse das iras do oceano, dos azares da profissão.

Esta festa, - vou falar no indicativo presente, porque ela inda não desapareceu inteiramente, - consta principalmente dos presentes á Mãe d’Água: frascos de perfume, banhas aromáticas, sabonetes, fitas, espelhinhos, pentes, maços de grampos, e o mais, que, acomodados em vasilhas de barro, novas, ataviadas de flores e laçarotes de papel de seda, se deitam ao mar, na meia-travessa da bahia, ou seja no leito da corrente que dela sae para o Atlantico, e são conduzidos em barcos e saveiros embandeirados, ao som de instrumentos africanos e do espocar de foguetes. Antes disso e depois disso, um samba, um batuque arreliento, arrojado, que se prolonga por horas sem conto. E aguardente como água. Claro está que só se utilizam da meia-travessa para receptáculo dos presentes os pescadores ribeirinhos da bahia. Os outros vão a pontos adrede elegidos, em pleno oceano.

Nos tres supracitados lugares de Itaparica ainda está em uso a festa da Mãe d’Água, no dia de Nossa Senhora das Candeias, comumente mas sem a animação de d’antanho. Tradicionalista apaixonado, tive oportunidade, pêlo qual me dou parabens, de assistil-a da Ponta d’Areia, em 2 de fevereiro de 1929.

Os pescadores do Rio Vermelho tambem fazem ainda a festa dos presentes, em fevereiro. No corrente ano efectuaram-na, mui modestamente, na segunda quinzena do referido mez. Os da Barra, penso que já a esqueceram. Nas armações de pesca de xaréo entre a Lagoa e o lugar propriamente dito Armação, essa exteriorização do culto á fabulosa divindade permanece igualmente amortecido. Tão ostentosa que foi outrora! A ponto de certo proprietário de redes de xaréo, nessa costa, presentear anualmente a dona do mar com uma escrava viva, negrinha ou mulatinha nova, que atirava ás ondas atada de pés e mãos!

A mais pomposa festa dedicada á Mãe d’Água, - Iemanjá, segundo os africanos, - nesta capital, era a que a gente de candomblé efectuava no terceiro domingo de dezembro, em Itapagipe, defronte do arrasado forte de São Bartolomeu. Era uma folia de estrondo, durante quinze dias seguidos, e comparecendo á mesma passante de dois mil africanos e creoulos dos dois sexos. Todos os paes e mães de santo, ou de terreiro, da Bahia, lá estavam, aqueles, segundo Manoel Querino (A Bahia de Outr’ora, ed. De 1922), muito lordes, exibindo chapéos do Chile, ou de castor, brilhantes em aneis e alfinetes de gravata, correntões e relógios de ouro; e essas, quebrando sedas e gorgurões, carregavam quilos de balangandáns, pulseiras e cordões de fino metal. Tambem atiravam presentes na meia-travessa, constando, além do que já apontei, de comidas preparadas com azeite de dendê, e carneiros e galináceos préviamente sacrificados, e também vivos, como o faziam igualmente os pescadores de Itaparica, em relação a estes ultimos.

Os candombléseiros do Gantois, da Mata Escura, do Engenho Velho, do Bôgum, do Pauzerré, e outros lugares cercãos, iam botar os presentes no Dique, durante a festança anual da rainha das águas. E, por fim, as lavadeiras da mais que centenária Fonte da Vovó, á rua da Vala e defronte do bêco do Funil, que alcancei sombrada por uma gameleira ramulhada, e frequentada por dezenas daquelas mulheres, não sei em que altura do mez de janeiro, promoviam a festança em honra da sereia protectora do manancial, para que o conservasse sempre abundoso. Durava a pagodeira dois, tres dias, com incrivel fartura de comidas azeitadas e apimentadas, dornas de aguardente, um samba ininterrupto e, lá para tarde da noite, - dado que o pagode atraia uma creoulada atrevida e turbulente, - bordoada de criar bicho. Tambem davam presentes á sereia; agora, onde os iam botar, não nei.

Veja-se bem como a crença na ficção oriental, emigrando possivelmente das margens do Ganges sagrado, perigrinando pêla Grécia imortal, e pêla velha Roma gloriosa, sintetizada em brejeiras ninfas e enganadoras sirehas, veio encorporar-se á nossa mítica, escalando pêlo continente chamita, e dramatizando-se, afinal, na orgia da Fonte da Vovó, e no candomblé de Itapagipe.

Até que, enfim, vou chegar onde queria, depois de haver impingido semelhante lengalenga ao próximo. Corre entre os pescadores do Rio Vermelho a seguinte tradição.

Existia ahi, em dias bem longe idos (em 1803 o Mosteiro de São Bento possuia no Rio Vermelho “um porto da armação da pescaria de xaréo” que lhe foi legado por Fr. Agostinho de São Gonçalo), uma rendosa armação de pesca de xaréo, o saboroso peixe tão estimado da gente pobre, e, outrora, tão ao alcance da sua magra algibeira. Quando era tempo do pescado, as redes vinham em termo de se romper. Um assombro. Os homens do pequeno arrebalde viviam endinheirados. O dono da armação, nem se fala. Já estava podre de rico. Certo dia, nas malhas de uma das redes lançadas ao mar, que era benta, como se usava geralmente, veio enleiada uma sereia. O proprietário do aparelho, desejando viver em paz com a gente de debaixo d’água, fel-a soltar imediatamente. Decorreram anos. E o xaréo sempre a pontapés. Outro era o dono da armação, quando, pela segunda vez, tornaram as redes a pescar uma sereia. Que fez o desabusado sujeito? Depois de renhida luta, conseguiu agarral-a, levando-a á igreja do povoado. Não sei se á extinta capela de São Gonçalo, ou á atual igreja de Sant’Ana. Divergem os narradores da tradição. Celebrava-se a missa, na ocasião. A sereia, cabiabaixa, envergonhada, por se ver no meio dos humanos, o formoso rosto e os rijos seios cobertosd com a opulenta cabeleira, chorava em termo de se acabar. Assim permaneceu no templo, sustentando-a dois pescadores pêlas axilas, por que se mantivesse erecta, até que, terminada a cerimonia, soltaram-na á beira-mar.

Desde esse dia, nunca mais se pegou um xaréo, para remédio, nas águas do porto de Sant’Ana do Rio Vermelho, apesar das oferendas que os pescadores do lugar jamais deixaram de ir levar anualmente á Mãe d’Água.

SILVA CAMPOS. João da. Por que não se pescam mais xaréos no Rio Vermelho. In: _____. Tradições Bahianas – Separata da Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia nº 56, 1930. Bahia: Secção Graphica da Escola de Aprendizes Artífices, 1930, p. 63-67.



Marcel Gautherot. Puxada do Xaréu, 1943.

Dmitri Kessel, abril de 1957.
Década de 1970.

Nenhum comentário:

Postar um comentário