Minhas senhoras e meus senhores:
Considero uma honraria a minha convocação para falar sobre Anísio Teixeira nas celebrações do seu nonagésimo aniversário de nascimento.
Só há uma justificativa para a escolha do meu nome: a determinação do tema proposto, "Anísio Teixeira e as Artes na Bahia", e a minha condição de poeta ligado aos movimentos literários, e de fundador da Galeria Oxumaré, que nos anos cinqüenta funcionava como um centro animador de atividades artísticas.
Acredito que o grande educador Anísio Teixeira, por temperamento, estrutura mental poderosa, não era um amador de arte no sentido comum. A sua agitação intelectual, como que em constante ebulição, não lhe permitia a simples contemplação, o gosto sentimental e a pura emoção.
Mas, como não poderia deixar de ser, guardava Anísio Teixeira a perfeita consciência dos valores da arte para a educação, que era na verdade o seu propósito maior.
Talvez que a sua formação jesuítica, data venia dos profundos conhecedores da sua vida e da sua obra, alguns aqui presentes, o levassem ao manejo da arma tão poderosa que é a arte, na defesa de seus ideais. [...]
Não foi por coincidência que o grande educador brasileiro nasceu na Bahia e que na Bahia nasceu a educação brasileira irradiada pelo colégio dos padres da Companhia, no Terreiro de Jesus. O mesmo colégio onde o Padre José de Anchieta escreveu a Arte da Gramática da Língua Mais Falada no Brasil ensinando os indiozinhos da sua dedicada tutela, e onde o Padre Vieira foi educado e teve formada a sua personalidade. Naquele sítio privilegiado aconteceu o milagre de N. Senhora das Maravilhas. Ali deu-se o famoso estalo de Vieira. Abria-se a inteligência do Pregador dos Reis e Rei dos Pregadores.
No exercício da Secretaria de Educação e Saúde, no Governo Otávio Mangabeira, Anísio Teixeira não relutou em aplicar recursos para projetos artísticos e de significado educativo. O patrocínio do I Salão Baiano foi na verdade iniciativa das mais notáveis da Secretaria de Educação que, num projeto de repercussão nacional, trouxe à Bahia os melhores resultados.
Com a invejável capacidade de formar suas equipes de colaboradores, assessores e especialistas credenciados nos vários campos de educação e cultura, logo arregimenta, na Bahia, para a sua gestão, os nomes de Diógenes Rebouças e de José Valadares, este que prestou ao Secretário Anísio os melhores serviços como Diretor do Museu do Estado.
O jovem Diretor, com estudos de Museologia realizados nos Estados Unidos da América do Norte, autor do livro consagrado Museus para o Povo, exercia a crítica de artes nos jornais da Bahia e afirmava-se como um verdadeiro animador de cultura. Os seus artigos, publicados no Diário de Notícias sob a Direção de Odorico Tavares, alcançaram a maior repercussão.
Eugênio Gomes, no prefácio para Dominicais, Crônicas de Artes, afirmava: "José Valadares é já um autêntico mestre, denunciando em tudo o que escreve a solidez do conhecimento que só a cultura geral e a experiência direta de cada matéria podem assegurar de maneira completa.
Sua posição, revelada por essa valiosíssima série de trabalhos, é de um espírito superiormente dominado pelo nobre empenho de esclarecer e guiar os que lêem através dos complicados meandros da arte moderna."
José Valadares, na direção do Museu do Estado, recebeu de Anísio Teixeira o maior estímulo para uma série de realizações que marcaram época, como sejam, primeiro uma série de publicações que incluiu numa preciosa coleção de estudos, que foram considerados definitivos; e a promoção de palestras e conferências que foram notáveis pela importância dos autores, especialistas, brasileiros como Sérgio Milliet, Mário Barata, Murilo Mendes, Alfredo Mesquita e estrangeiros como Melville Herskovits, Germain Bazin, Robert Smith e outros.
Diógenes Rebouças vai realizar para a Secretaria de Educação o projeto do Centro Educacional Carneiro Ribeiro que, decorridos quarenta anos da sua implantação, ainda serve de inspiração e modelo para outros estados do Brasil.
No Centro Educacional Carneiro Ribeiro, Anísio Teixeira deu oportunidade para os artistas da Bahia e do Brasil contribuírem de modo especial para a realização de pintura mural moderna. Com pioneirismo, no Brasil, destacaram-se os pintores Carlos Bastos, Caribé, Jenner Augusto, Maria Célia e Carlos Magano.
O Salão Baiano de Belas Artes alcançou em todos os sentidos o maior sucesso. A visitação ultrapassou a casa dos 25 mil visitantes e, além da importância das obras expostas, destacou-se a instalação, que se revelou fora do comum.
O salão era composto de duas divisões: a divisão geral e a divisão de arte moderna. Dois artistas foram distinguidos com painéis exclusivos para a sua obra: Cândido Portinari, em termos nacionais, e Alberto Valença, grande pintor baiano. Na exposição mereceram destaques especiais os aspectos da iluminação e dos canteiros protetores que contornavam os painéis, evitando que o visitante se aproximasse demais e ao mesmo tempo criando efeitos plásticos muito curiosos.
O Salão reuniu 204 obras, sendo 1 de arquitetura, 12 de escultura, 3 desenhos e gravuras e 148 de pintura, ao todo 146 artistas que representavam todas as tendências da arte brasileira na época.
A presença de nomes como Emiliano Di Cavalcanti, Walter Levy, Quirino da Silva, Cândido Portinari, Flávio de Carvalho, Anita Malfatti, Maria Leontina, afirma a confiança que o Salão Baiano inspirou.
José Valadares, o nosso prestigiado crítico, publicou uma lista da sua preferência, para os trabalhos individualmente considerados: Desenho: Adolescentes, de Ceschiatti; Horta, de Carlos Scliar e Pelouirinho de Carlos Thiré; Pinturas: Meninos, de Virgínia Artigas; Tinhorão, de Aldo Bonadei; Cosme Velho, de lberê Camargo; A Estação, de Hilda Campofiorito; Retrato de José Lins do Rêgo, de Flávio de Carvalho; Portas, de Lothar Charoux; Retrato de Menino, de José Pancetti. Vale lembrar que todos esses nomes, decorridos mais de quarenta anos, são considerados monstros sagrados da arte nacional e alcançam os mais altos preços no mercado de arte.
Participei de uma das primeiras atuações pessoais do Secretário de Educação e Saúde do Governo Otávio Mangabeira em favor das artes na Bahia, resultante de apelação em última instância, ao Secretário da "Saúde", grifado, feita por jovens artistas, pintores, escultores e decoradores, que não podiam inaugurar o Bar Anjo Azul, iniciativa muito badalada pelo inusitado, porém sem autorização da Saúde Pública, que a negava terminantemente em nome dos regulamentos. Na verdade o estabelecimento não se enquadrava absolutamente nas exigências oficiais, porque não tinha iluminação adequada, faltava aeração, com apenas uma abertura como porta de entrada e uma pequena janela de fundo; enfim sofria da precariedade de estar instalado no socavão de um sobradinho magro da rua do Cabeça. O sanitário tinha como vaso um arremedo de trono decorado com flores artificiais; inexistência de ladrilhos higiênicos, substituído por pintura de mural, com motivos extravagantes. O mobiliário era antigo, com mesas e cadeiras de jacarandá trabalhado, misturados com nichos e imagens de santos mutilados, louças antigas e vidros de farmácia. Em compensação havia esplêndida pintura mural e escultura moderna da autoria de Carlos Bastos e Mário Cravo Júnior.
O decorador e dono da casa, José Pedreira, antiquário e escritor, realizava a sua melhor criação, O Bar Anjo Azul destinava-se a fazer um grande sucesso, graças à sensibilidade do Secretário Anísio que, em inspeção pessoal, autorizou o funcionamento!
O fabuloso Anjo Azul organizou as primeiras exposições de arte moderna na Bahia, com as mostras de Jenner Augusto, Maria Célia, Tiziana Bonazola e Genaro de Carvalho.
Mário Cravo Júnior, com a sua ousada escultura, a Madona de Ferro, era o artista mais discutido, repudiado e até consagrado pelos existencialistas da Bahia nos anos 40.
Como dizia Roberto Pontual, em seu livro Jenner Augusto - A Arte Moderna na Bahia, as idéias geradas lá fora, no pós-guerra, especialmente as que tratavam sobre o arcabouço do existencialismo, passaram a fazer parte das noites cálidas e enluaradas do outro continente, propícias ao bate-papo sob a brisa da Baía, ou no escuro fumarento de um Anjo Azul descontraído.
Tais conversas e tal ambiente me levaram a realizar a minha primeira tentativa de teatro, quando escrevi, em 1949, o Auto da Convivência, que tinha como figuras o poeta, dois pintores e outros artistas. O argumento: " - Assim como houve em todos os tempos lugares preferidos, onde homens do mesmo pensamento se encontravam, aqui nesta cidade antiga, há um lugar estranho, onde homens e mulheres se encontram simplesmente para aceitar a vida. Esse lugar separado é apenas um bar, refúgio e esconderijo". [...]
Apesar da má fama do local, angariada apenas porque era moderno, extravagante e boêmio, executavam-se recitativos, fados e tangos cantados por um pandeirista e pintor recém-chegado da Argentina.
Apesar de tudo contava entre os seus freqüentadores muita gente boa da cidade e visitantes dos mais ilustres. Lá podia ser encontrado o diretor dos Diários Associados, o poeta Odorico Tavares; o poeta e professor Godofredo Filho, Diógenes Rebouças, D. Clemente da Silva Nigra e, como não podia deixar de estar entre os intelectuais, Anísio Teixeira.
O Dr. Simões Filho, depois de satisfazer a curiosidade despertada em todas as camadas sociais, declarou: "A Bahia ou Paris".
Não posso deixar de repetir uma tirada bem ao sabor de Anísio Teixeira que, no Anjo Azul, em minha companhia e de minha mulher, confessava o quanto lhe era agradável o ambiente, a atmosfera boêmia, a presença de artistas, e mais, tinha inveja de não poder fazer o mesmo. E, com muita verve, declarava: "Não posso contar com a companhia de minha mulher, porque ela se transformou nesse monstro que se chama mãe!".
Outra interferência pessoal de Anísio Teixeira em favor das artes na Bahia, foi a acolhida que deu ao pintor Caribé, que aqui chegava recomendado por Rubem Braga. O pintor argentino pleiteava recursos para começar a viver na Bahia, o que lhe foi concedido pelo Secretário Anísio Teixeira, em forma de bolsa de estudos, encaminhando-o ao Dr. José Valadares, diretor do Museu do Estado. Valadares, por ser um homem muito sério, cônscio das suas responsabilidades e feroz defensor das coisas do Estado, não poderia admitir que o artista ficasse na Bahia sem fazer nada, além de aprender a tocar berimbau. Tomou enérgicas providências, determinando que o pintor fosse ensinar desenho nas escolas públicas.
Caribé ficou simplesmente apavorado com a idéia e muito triste porque não tinha nenhuma vocação para mestre-escola e, sob tal ameaça, foi pedir a proteção de Odorico Tavares, homem de muita influência, que apelou para o Secretário Anísio Teixeira, sugerindo que permitisse a Caribé apenas exercer seu ofício, desenhando a Bahia, as suas festas populares, os tipos, os logradouros e que fornecesse os desenhos produzidos ao Museu do Estado, acalmando assim os escrúpulos do diretor José Valadares. Isso foi feito e resultou na mais preciosa coleção de desenhos de Caribé, publicados depois na Coleção Recôncavo.
A propósito desta coleção, José Valadares, em seu livro Estudos de Arte Brasileira, afirmava: "Coleção de notabilíssimos desenhos acerca dos costumes de arte popular na Bahia atual, distribuída por assunto em dez álbuns de excelente gosto tipográfico. Pequenas introduções ao tema por Wilson Rocha, Odorico Tavares, o próprio Caribé, Vasconcelos Maia, Carlos Eduardo da Rocha, José Pedreira e Pierre Verger".
José Valadares, em seu livro Dominicais, Crônicas de Artes, na crônica denominada "As Artes no Governo Mangabeira", escrita em 31 de dezembro de 1950, disse: "Embora ainda falte um mês para que se encerre o quadriênio mais dinâmico que a Bahia republicana já teve, não será fora de tempo para dar um balanço provisório no patrocínio recebido pelas artes: arquitetura, escultura, pintura, música, poesia. Tanto no que é permanente como no que é passageiro. Tanto no material como no que é do domínio do espírito.
... Na Bahia, nos últimos quatro anos, período que talvez vá deixar saudade no coração dos artistas, tantas foram as iniciativas, que se teve a impressão de estar noutra terra. Algumas como o Clube de Cinema saíram de particulares. Não se poderá negar, entretanto, que sempre tenham encontrado a simpatia do governo para as suas necessidades. Como não se poderá contestar que tenham sido, principalmente, fruto do crescimento da cidade e de suas preocupações culturais.
Não tenhamos dúvida porém, de que seu aparecimento e extraordinário sucesso muito devem ao clima de vigor artístico, em parte criado durante o quadriênio. Relembremos algumas iniciativas propriamente oficiais, ou substancialmente apoiadas pelo governo, e logo nos daremos conta do impulso que significaram e do movimento de renovação que provocaram".
Ninguém melhor para falar da nova arquitetura criada naquele feliz período, que infelizmente até os nossos dias não foi igualada, do que o crítico consagrado:
ARQUITETURA
"Começamos pelo que é pequeno, mas onde o bom gosto se requintou numa das suas mais felizes manifestações entre nós: - o mercadinho de peixe do Porto da Barra. É como um grande pássaro que tivesse pousado naquele recanto da praia, sem interferir na beleza da paisagem. Suas cores são o cinza avermelhado das rochas, o azul do céu e do mar, o branco das paredes do Forte de Santa Maria, seu aristocrático vizinho.
No Campo Grande, o novo Hotel da Bahia, ainda em construção: Já é possível, no entanto, apreciar a engenhosa curvatura que acompanha a Av. Sete e a grandiosidade da entrada principal".
Sobre o belíssimo hotel, todos nós ainda agora podemos testemunhar a sua grandeza, a despeito das tentativas de desfigurar o projeto original, depois que passou para a propriedade privada. Em boa hora a última reforma foi entregue ao seu autor, o arquiteto Diógenes Rebouças, que pôde consertar com muita felicidade tantos erros.
Sobre o Teatro Castro Alves, dizia ainda José Valadares: "será obra capital da arquitetura moderna na Bahia".
Falou muito mal, e com justas razões, do Fórum Ruy Barbosa que, ao seu ver, reuniu tudo que o mau gosto contemporâneo é capaz de oferecer. Curiosamente afirmou que se excetuam as peças de escultura, e não se referiu a cabeça de Ruy, em proporções monumentais, que é das primeiras obras de Mário Cravo Júnior, e das melhores, assim considerada pela crítica geral, como de melhor sentido expressionista.
Outra obra de importância social e arquitetônica haveria para comentar, como as escolas do centro Educacional Carneiro Ribeiro e na mesma crônica registra que, na construção residencial, já pegou entre nós a moda do moderno. Nesse campo quero destacar as residências que Diógenes Rebouças projetou para Odorico Tavares e Fernando Góes, de acentuada modernidade, e que permanecem atualíssimas. Na residência Odorico Tavares a fachada principal ostenta a bela escada, que mais parece um monumento, como um balcão que se lança do alto do morro lpiranga para o vale, como se fosse uma acrópole baiana de sentido moderno.
ESCULTURA E PINTURA
"Nestas duas artes, o que fez o governo de maior alcance foi o Salão Bahiano, criou as condições para uma emulação que será benéfica a todo o país, caso sua orientação sempre se mantenha no plano largo dos dois primeiros.
Ligados à arquitetura aparecem os murais. Constituem o passo mais avançado da pintura baiana moderna.
Não seria justo atribuir ao governo o aparecimento de tantos artistas novos como os que agora vão surgindo. Mas não seria justo tampouco esquecer o estímulo que lhes foi trazido, não somente com o Salão como também com a ajuda financeira e o prestígio das exposições, tanto de nacionais como de estrangeiros".
TEATRO, MÚSICA E POESIA
O cronista declara ser terreno em que não tinha a mesma experiência dos outros. No teatro, o aparelhamento do auditório do Instituto Normal e do velho Guarani, quanto ao lado material. Quanto ao artístico, a temporada da Escola de Arte Dramática de São Paulo. Nesse campo eu quero lembrar a montagem que fez o saudoso Adroaldo Ribeiro Costa, de Narizinho, certamente dando a Anísio Teixeira a alegria de trazer à Bahia o seu querido amigo Monteiro Lobato.
O campo musical não deixou de receber as atenções da Secretaria, quando com espírito renovador, patrocinou a vinda para a Bahia do músico americano Marshall que, apesar das inovações (instrumentos eletrônicos, os órgãos e teclados e a companhia constante do seu grande cão lobo do Alasca!) não deixou de realizar uma grande pesquisa de música popular, reunindo, num simples relatório, mais de setecentos temas populares, ao que me parece, infelizmente perdidos.
Quero concluir com nota da minha predileção, que foi o aparecimento na Bahia da jovem e bela dançarina Lia Robato. Em rápido depoimento ela declarou-me ter dançado na Escola-Parque com grande entusiasmo e que dançando para os estudantes da escola pública, teria aprendido mais com a experiência do que mesmo ensinando aos meninos pobres da Estrada da Liberdade, no Centro Educacional Carneiro Ribeiro.
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