São Salvador, 7 de dezembro [1928].
Da vista de São Salvador que a gente enxerga de bordo tem um
pedaço bem no centro em que as casas se amontoam num estardalhaço de janelas,
andares, telhados, parece mentira... não é mentira não, é estardalhaço.
Gosto de banzar ao atá pelas ruas das cidades ignoradas...
aqui a impressão de estardalhaço continua. Parece incrível que se tivesse
construído uma cidade assim... Ruas que tombam, que trepam, casas apinhadas e
com tanto enfeite que parecem estar cheias de gente nas janelas, o barulho nem
é tamanho assim porém dá impressão de enorme, um enorme grito.
A sensação de simultaneidade é feroz, lembra cinema alemão.
Os bondes, pra desembarcar num plano, tombam de banda e passam por cima da
cabeça da gente. Vêm cheios de moços de branco dependurados até nas torres
curtas das igrejas. Torcem por cantos inconcebíveis como pontes-dos-suspiros
[estreitas pontes de Veneza], fachadas paradas na porta da rua, atravancando o
trânsito. Um largo e três igrejas de repente. Pra chegar na cidade alta a gente
dá de cara com mais outra igreja de teatro, num trânsito vivo de gente
irregular, todos os matizes, gente de enfeite, gente posta ali pra gente ver.
São Salvador me atordoa vivida assim a pé num isolamento de
inadaptação que dá vontade de chorar, é uma gostosura. É uma cidade justamente
o contrário do Rio de Janeiro que se goza mais de automóvel. São Salvador não.
E nem é tanto questão de apreciar os detalhes churrigerescos dela [exageradamente
ornamentados, barrocos], é questão mesmo do sabor físico que dá passeada a pé.
O automóvel isola o observador do estardalhaço ambiente. Passear a pé por São
Salvador é fazer parte dum quitute magnificente e ser devorado por um
gigantesco deus Ogum, volúpia quase sádica, até.
E agora o Manaus [navio em que estava viajando] vai se
embora me levando. Tenho essa lassitude aberta de quem gozou como não era
possível mais o dia de férias. Não é injustiça ser feliz e a tarde cai. Os
ventos varrem o Recôncavo chispando água de mar. O céu cinzado é uma nuvem só e
a lâmina espetaculosa da cidade se aconchega numa palidez indiferente. Eis que
um sol antigeográfico tropicaliza a boca da noite, bate na chapa na cidade. São
Salvador se torce toda, gozando a luz que é dela, com muita mansidão. Nem
palheta de Utrillo [pintor parisiense]!... Ninguém jamais não conseguirá esses
rosas doirados, esses azuis de Virgem Maria, esses amarelos de areia
esturricada e os verdes dos mangueirais. Cor dos anos, cor de séculos montoados
uns sobre os outros... Por riba do farol de Amaralina, trepa no paredão do
morro um magote de coqueiros brincalhões num estardalhaço em que a distância
põe surdina gritando:
- Olha o navio!
- Olha o navio!
Mário de Andrade, O Turista Aprendiz.
[Brasília, DF: IPHAN, 2015, p. 263-264].
Fotos de Mário de Andrade no citado livro:
Fotos de Mário de Andrade no citado livro:
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