terça-feira, 17 de janeiro de 2012

Centro Histórico no século XIX

MATTOS, Waldemar. Evolução histórica e cultural do Pelourinho.
SENAC, Rio de Janeiro, 1978, p. 23-28:


Século XIX

Antes da demolição das muralhas centenárias do sistema de fortificação da cidade seiscentista, a rua das Portas do Carmo terminava no fim do Maciel de Baixo, de onde partia estreita rua que desembocava na Baixa dos Sapateiros. Do lado direito divisava-se a Igreja do Rosário dos Pretos, completamente isolada. Depois da demolição, levantou-se o quartel do Rei e Corpo da Guarda das Portas do Carmo, servindo de base pedaços de alvenaria restantes do antigo esquema defensivo da cidade seiscentista.

Os terrenos em que se efetuaram as duas construções citadas foram doados ao Conselho da Cidade do Salvador por alvará de 15 de dezembro de 1686, subscrito pelo governador e capitão general do Estado do Brasil, D. Antônio Luis de Sousa Teles de Meneses, Marquês das Minas. “..., uns chãos que estão nas portas da Cidade, do Carmo, indo para fora à mão direita, indo pela ladeira abaixo aonde chamam os Sapateiros”.

A 19 de dezembro do ano supra, o procurador do Conselho da Cidade, capitão Baltazar Gomes dos Reis, “tomou posse dos ditos chãos”, cuja doação foi lavrada em notas do tabelião Gonçalo de Sousa Freire, em presença das testemunhas Cristóvão Ramires Madeira e Aleixo Gonçalves Chaves.

Gilberto Freire, em Sobrados e Mucambos, Rio, 1961, consigna que a partir do começo do século XIX, “a rua foi deixando de ser o escoadouro das águas servidas dos sobrados, por onde o pé calçado de burguês tinha de andar com jeito senão se emporcalhava todo, para ganhar em dignidade e em importância social. De noite, foi deixando de ser o corredor escuro que os particulares atravessavam com um escravo à frente, de lanterna na mão, para ir se iluminando a lampião de azeite de peixe suspenso por corrente de postes altos. Os principios de iluminação pública. Os primeiros brilhos de dignidade da rua outrora tão subalterna que era preciso que a luz das casas particulares e dos nichos dos santos a iluminasse pela mão dos negros escravos ou pela piedade dos devotos.

Ao mesmo tempo, a partir daquela época, as posturas municipais começaram a defender a rua, dos abusos da casa-grande que, sob a forma de sobrado, se instalara nas cidades com os mesmos modos derramados, quase com as mesmas arrogâncias, da casa de engenho ou de fazenda: fazendo da calçada, picadeiro de lenha, atirando para o meio da rua o bicho morto, o resto de comida, a água servida, às vezes até a sujeira do penico”.

Ao sul do largo do Pelourinho, construiram-se as casas onde funciona a agência do Banco do Estado da Bahia e a sede do Museu da Cidade. Junto à Igreja do Rosário dos Pretos, o sobrado de João Rodrigues Germano, palco de fatos memoráveis no Pelourinho.

A rua das portas do Carmo aumentou além da “Travessa da Rua das Portas do Carmo para o Maciel”, com o acréscimo de novas casas, do lado do poente e prolongou-se com a denominação de “Ladeira que desce das Portas do Carmo para a Baixa dos Sapateiros” (1802). Principal via de acesso para o norte, flanqueava o Castelo, do lado esquerdo.

As novas construções do Pelourinho modificaram, por completo, a fisionomia da praça, outrora seccionada ao meio com as muralhas das Portas do Carmo.

O Almanaque para a Cidade da Bahia, de 1812, relaciona elevado número de moradores categorizados, do clero, da administração e das guarnições militares. Nas Portas do Carmo, residiam José Francisco Cardoso de Morais, secretário e deputado da Mesa da Inspeção; Paulino da Silva Lisboa, tesoureiro da Mesa da Constituição para as despesas da Real Junta do Comércio; José Francisco Cardoso, professor de Latim. Travessa do Açouguinho: sargento-mor Manuell Gonçalves da Cunha, do Corpo Militar, e o ouvidor da Comarca José Raimundo de Passos de Porbem de Barbosa. Rua da Laranjeira: cônego Manuel Anselmo de Almeida Sande, deputado numerário; padre Jerônimo de Santana Braga; Cassiano Espiridião de Meio e Matos, Juiz da Balança da Casa da Moeda. São Miguel: padre Francisco José Verissímo Pimentel, Maciel: deão da Sé, Manuel de Almeida Maciel; arcediago Manuel Marques Brandão; padre José Lopes Vieira Brandão; Pedro Gomes Ferrão, diretor da Biblioteca Pública; Luis Pereira Sodré, deputado da Mesa da Inspeção, indicado pelos Lavradores de Açúcar; tenente-coronel José Francisco de Sousa e Almeida; capitão José da Gosta Xavier; sargento-mor Antônio Joaquim Correia de Morais. Ladeira do Carmo: os padres José Joaquim de Brita e Vicente Ferreira de Olveira.

A fonte citada não registra moradores no Largo do Pelourinho,  confirmação evidente da que o número de casas nas duas primeiras décadas do século passado era insignificante.

No primeiro andar do sobrado da esquina das Portas do Carmo, com frente para o Terreiro de Jesus, conhecido por Casa do Banco, a 2 de janeiro de 1817, o Banco da Bahia, primeira filial do Banco do Brasil, iniciou suas atividades — a pedido de alguns negociantes desta praça. Primeiro estabelecimento bancário da Bahia, destinado “a facilitar as operações mercantis, a extensão do comércio e prosperidade da agricultura” contou com o apoio dos seus principais acionistas: Pedro Rodrigues Bandeira, Felisberto Caldeira Brant e Manuel Joaquim dos Reis, expoentes das finanças. O banco ou caixa de descontos foi mandado estabelecer nesta capital por carta patente de 1B de fevereiro de 1816: ‘Haverá na cidade da Bahia uma caixa de descontos, estabelecida pelo Banco do Brasil”.

Entre 1808 e 1821, as cidades se transformam. “Têm insistentes motivos de sedução das populações rurais, As casas renovam-se, generaliza-se o hábito de transportar-se o senhor de engenho do solar do campo para o da cidade na estação invernosa, os governos melhoram a topografia, a higiene, o policiamento, a iluminação dos centros urbanos”.

Impressões, criticas, idéias, modificaram os costumes da era oolonial, em franca decadéncia.

O começo da rua das Portas do Carmo denominava-se de Canto do Peixe, “por haver ai uma quitanda de pescado”. Do lado esquerdo, perto do [argo do Pelourinho, “havia um càrredor” que dava “passagem aos jesuitas”. Diz Melo Morais, pai, servia “de porta de comunicação para uma pequena chácara” que ficava “nos fundos das casas da mesma rua”, do lado da encosta, ocupada pelo prédio da Faculdade de Medicina,
Em 1866, Melo Morais fala da existência de “parte das muralhas do Castelo das Portas da Carmo, junto ou fazendo parte da parede lateral da casa nobre, no começo da ladeira da Baixa dos Sapateiros, pegada à Igreja do Rosário, que foi do coronel Manuel José Vilela, pelo lado nascente e do poente, na casa em que residia e é proprietário o antigo advogado bacharel em direito José Joaquim dos Santos”.

Na década de 60, morava às Portas do Carmo, Dr. Torquato Rodrigues Dutra Rocha, delegado das Terras Públicas, e o vigário Próspero Ferreira de Sousa. Maciel de Baixo, monsenhor João Pereira Ramos, desembargador da Relação Eclesiástica e professor de Direito Canônico no Seminário Arquiepiscopal. Largo do Pelourinho, os cônegos: Lino Rodrigues Alvim e lnocêncio Moreira do Rio, nomes expressivos do Cabido Metropolitano.

A desocupação da área do Pelourinho, por seus moradores primitivos, data do terceiro quartel do século. Os proprietárias dos imóveis arrendavam ou vendiam a comerciantes, transferindo-se para os novos bairros que se formavam na zona sul da cidade — cujas construções se adequavam melhor ás necessidades criadas pela crescente urbanização.

Na antiga chácara dos jesuítas, às portas do Carmo, contíguo ao Hospital “pelo lado posterior”, havia “uma enfermaria especial para variolosos”.
Na década de 70, o clero secular extendeu-se por quase todas as ruas do Pelourinho: Cruzeiro e ladeira de 5. Francisco, Laranjeira, Passo e Flores. Concentrava-se nas freguesias da Sé e do Passo, integradas de uma dezena de templos religiosos: Catedral, antigo Colégio dos Jesuítas; Misericórdia, Sé, Convento e Ordem Terceira de S. Francisco, S. Pedro dos Clérigos, São Domingos, Ajuda, São Miguel, Rosário dos Pretos, Passo, Convento e Ordem Terceira do Carmo. [...]

Os primazes moravam no imponente palácio Arquiepiscopal, da praça da Sé, atualmente sede da Arquidiocese da Bahia, construído por D. Sebastião Monteiro da Vide, V Arcebispo da Bahia.

A frequência dos padres nas vias públicas, dia e noite, para atender aos mandamentos da Igreja era constante. Não causava surpresa aos moradores. Todos admiravam o desvelo dos humildes servos de Deus pelas ruas escuras, silenciosas, mal assombradas, pregando a fé do Cristo.

A saida do Viático, solene, — Nosso Pai, ou Senhor Fora, como dizem os portugueses. — para os moribundos, anunciada pelos sinos das matrizes da Sé e do Passo, angustiava, alarmava os moradores. Uma pergunta de espanto, saía de labios aflitos: — Quem está passando mal, já nas últimas?...

“Eram aqui exatamente como no Recife, segundo Mário Sete, umas “chamadas lentas, tristes, repetidas”. Se homem o enfermo, sete badaladas. Se mulher, cinco. Davam ciência de encontrar-se alguma parturiente em perigo de vida. Toques especiais, estes, ainda privativos dos sinos das matrizes, e hoje absolutamente dessuetos, desde há muitos anos. Convidavam ambos os sinais à oração pelo que se estava a findar, pela que se encontrava em risco de vida para dar vida a outra criatura. Quem será, meu Deus? perguntava-se ao ouvir o primeiro. Mulher de parto! exclamava-se ao ouvir o segundo”.

Decorrido mais de um século, um sacerdote por aqueles logradouros dominados pela prostituição, é motivo de comentários desairosos, ultrajantes. A condição de guia espiritual desaparece diante da calúnia, da suspeita. O progresso transformou salões e quartos dos solares nobres, de tetos apainelados que já não atendiam às exigências do conforto, outrora, recintos sagrados de orações e meditações, em cortiços, divididos por tabiques. [...]

Quase todas as ruas eram assinaladas com a presença de médicos e advogados. Habitavam no Pelourinho: Antônio Joaquim da Silva Gomes, desembargador do Tribunal da Relação da Bahia; Dr. José Inácio de Oliveira, médico interno do Hospital da Santa Casa; comendador João Rodrigues Germano. Baixa do Pelourinho, Teodoro Vieira do Couto, farmacêutico do Hospital Militar. Às Portas do Carmo: Dr. Gustavo Aniceto de Sousa, procurador dos Feitos da Fazenda: Adriano José Leal, Juiz de Direito do Comércio; capitão-tenente da Armada Lourenço Elói Pessoa de Barros, engenheiro das Obras Públicas; Manuel de Sousa Campos e Arnaldo Lopes da Silva, membros da direção do Banco da Bahia. No fim da rua, funcionava a Sociedade de Beneficiência Fraternidade Sergipana. No Maciel de Baixo, residia Paulo Joaquim da Mata, inspetor de Visita da Saúde do Porto e Antônio José Correia Machado, arquiteto da Província.

No Pelourinho, n.° 4, residência de Frederico Marinho de Araújo. advogado dos escravos, ficava a Sociedade Libertadora Sete de Setembro, presidida por José Luís de Almeida Couto, político, mais tarde, presidente da Província. A jovem agremiação fundada a 7 de setembro de 1869, quando a luta pela escravidão abalava a estrutura conservadora do Império de norte a sul, desfraldava a bandeira da libertação dos escravos e ateava a chama das idéias abolicionistas. A 7 de março de 1871, passou a contar com O Abolicionista, periodico quinzenal. Frederico Marinho de Araújo, primeiro secretário, da Sociedade, instalou a redação do jornal no andar superior de sua residência. Faziam parte da redação, além do defensor dos pretos, Augusto Álvares Guimarães, mais tarde, cunhado de Castro Alves. Colaboradores: Belarmino Barreto e Dr. Antônio Ferreira Garcia.

O comércio, pouco a pouco, foi tomando conta das residências antigas. Começou pelo Tabuão, ponto de ligação entre a Cidade Baixa e a Cidade Alta. Funcionavam doze lojas de fazendas e três armarinhos. Casas de jóias e de calçados. Seis lojas de imagens, das dez existentes na cidade. Duas lojas de arreios e quatro de móveis, Contava, ainda, com tendas de oficiais mecânicos de profissões variadas: ourives e funileiros; entalhador, escultor, dourador, latoeiro, sapateiro. correeiro e seleiro.

Nas Portas do Carmo três lojas de calçados, duas de cera, e a botica de Leovigildo Gonçalves de Sena. No Maciel de Baixo, uma loja de louça. Duas padarias, uma no Maciel de Baixo e outra na rua do Carmo. Uma barraca de cereais e um açougue, nas Portas do Carmo. O número de tavernas passava de vinte. O Tabuão liderava com cinco, Maciel de Cima e de Baixo, sete, Portas do Carmo, três. Ordem 3ª de S. Francisco e rua das Flores, quatro, Laranjeira e Carmo, duas.. Muita baiúca ordinária. Bebia-se demasiadamente no varelo. Comércio mais tarde monopolizado pela Colónia Espanhola extinguiu-se com a introdução dos super-mercados. Não se registrava a presença do ramo de quinquilharia.

Na década de 80, o Pelourinho tornou-se um dos centros preferidos pela classe médica, para residência e consultórios. Distribuiam-se entre as Portas do Carmo e a Rua do Passo. Dentre os esculápios citam-se: Carlos Devoto. Pedro Ribeiro de Araújo e Silvino Pacheco. Na rua das Portas do Carmo habitavam: Antônio Ferrão Moniz de Aragão, vice-diretor da Instrução Pública; José Augusto de Figueiredo, provedor do Colégio dos Órfãos de S. Joaquim: Eduardo Cariqé e João Varela, escritores. Nas casas térreas, das travessas e becos, funcionários da administração. As altas figuras do comércio e da aristocracia rural já haviam esvaziado a massa de sobrados com janelas de púlpitos e grades de ferro.

A preferência para o comércio recaia na rua das Portas do Carmo. onde funcionava a loja de calçados de Manuel Moncorvo. No largo do Pelourinho, uma farmácia, para atender o receituário dos facultativos. No Maciel de Baixo, a “Loja de Livros”, de J. 6. Marlins.

O clero localizava-se na rua da Laranjeira, próximo das igrejas e do antigo prédio do Seminário São Dâmaso, na rua do Bispo.

Na década de 90, a Familia Mangabeira residia nas Portas do Carmo, n° 21, defronte do Instituto Nina Rodrigues, no sobrado em que funcionava o Colégio Santana, dirigido pela educadora Ana Emilia de Paraiso. Francisco Mangabeira, nessa quadra, começava a poetar pelos botequins e noitadas, suscitando comentários desairosos. [...]


As associações de classe, Sociedade Protetora dos Desvalidos, fundada a 16 de setembro de 1832, situada no Cruzeiro de S. Francisco, n.° 17; Clube Beneficiente dos Mártires, a 20 de janeiro de 1891; Centro Operário da Bahia, a 6 de maio de 1894, e a Sociedade Beneficienle União das Classes, a 15 de novembro de 1895, participaram da transição da área do Pelourinho, Surigiram com a finalidade de combate, de conscientização da classe operária.

As organizações deste tipo “obedecem a diversas modalidades, desde aquelas que se destinam ao auxilio mútuo até a defesa contra os inimigos da classe. porém, todas elas são simples transposições de suas congêneres européias, existindo harmonia”.

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