terça-feira, 3 de abril de 2012

Centro Histórico no século XX

MATTOS, Waldemar. Evolução histórica e cultural do Pelourinho.
SENAC, Rio de Janeiro, 1978, p. 28-33:



SÉCULO XX


As transformações sociais iniciadas nos fins do século X1X converteram o Pelourinho em área proletária, a partir da década de 30, asfixiada por formigueiros humanos. Toda redondeza sofreu o impacto violento que se processou com a queda da economia rural, desmoronada após a abolição da escravatura, a 13 de maio de 1888.

As casas não satisfaziam mais às necessidades da era que se iniciara. Os padrões arquitetônicos tornaram-se obsoletos. Toda zona desvalorizava-se social e economicamente. Impunha a saída dos moradores abastados ao tempo em que exercia poder de atração sobre grupos que ali chegavam, cujos pequenos ganhos limitavam suas despesas, e tinha grande importância a localização da residência próxima ao local de trabalho.

Na primeira década de 1900, figuras das letras jurídicas moravam no Pelourinho. Na praça José de Alencar, Dr. João Pedro dos Santos, promotor público em Nazaré, secretário de Estado, nos governos de Severino Vieira e José Marcelino de Sousa, depois deputado federal, No Maciel, desembargador João Nepomuceno Torres, do Tribunal de Apelação e Revista, Na rua do Passo, José Joaquim Landulfo da Rocha Medrado, do Tribunal de Conflitos e Administração, e Joaquim Ribeiro dos Santos, oculista.

Funcionou no largo do Carmo (1910-1911), o Cinema Castro Alves, de propriedade da firma Bitencourt & Mota, constituída pelo farmacêutico Leonardo Pompílio Bitencourt e Joaquim Alves da Silva Mota.

No largo do Pelourinho, correr da Igreja do Rosário dos Pretos, residiram integrantes da Familia Teixeira, antiga e tradicional estirpe sertaneja: Coronel António José Teixeira, casado com Madalena da Silva Teixeira e os filhos: Rogociano Pires Teixeira, Antônio José Teixeira Júnior, e Deocleciano Pires Teixera, doutor em medicina, chefe politico em Caetité, pai de Anisio Spinola Teixeira cuja “vida foi transcorrida numa sucessão de fatos e de experiências de transcedente importância para o desenvolvimento da educação”.

Almáquio Diniz, “o maior polígrafo nacional”, na opinião de Silvio Romero, em Bodas Negras, “o romance de uma pequena cigana”, publicado em folhetins da Gazeta de Noticias, 1912, e, depois, em livro, Lisboa, 1913, numa concepção estética alheia às novas correntes do pensamento, fixa aspectos da vida social do Pelourinho, vinte anos depois comentada em linguagem modernista, caracterizada com a ruptura das tradições acadêmicas. As cenas de amor são descritas num estilo meigo, de doçura, adotado por Afrânio Peixoto, em sua obra de ficção. Aparecem configuradas em reticências, com o correr dos anos ao vivo... “A sua felicidade?.. O seu casamento?... A sua noiva.., — perguntava ela, ingenuamente, descendo as Portas do Carmo, a quem encontrava, madrugada. às portas de suas casas... No largo do Pelourinho: “Passando pelas entradas abertas da igreja do Rosário, Júlia traçou uma aligeirada cruz, com a mãozinha direita aberta, indo da testa ao peito e do ombro esquerdo ao direito: tinha diminuído os passos, olhando arrebatadamente para as pequenas luzes que divisava, do meio da rua, no interior do templo. Repentinamente arrependeu-se do que fazia, e rompeu, de novo, a sua marcha, ladeira abaixo. Passos adeante, na soleira de uma taverna, estava um pequeno ajuntamento de gente de vários instintos. E dentro, repimpada num pequeno banco de madeira. uma negra, de moles carnes, pala luzidia, carapinhas retorcidas, enchia e reenchia as tijelas do saboroso mingau de milho, que a numerosa freguesia servia, chuchurreando os próprios lábios, e mastigando o pão do dia, muito fresco, comprado, ali mesmo, no balcão da taverna. A vendeira não descansava. Os seus braços iam e vinham na distribuição do vasilhame cheio e no asseio do servido. Naquele movimento, a alva camisa arrendada da mulher, descia-lhe pelos ombros rotundos e carnudos, por vezes abrindo um vazio, para a frente, quando ela inclinava a cabeça sobre a tina da lavagem, de modo que os circunstantes lhe apreciavam duas desenvolvidas tetas, muito livres naquele jogo certo de vai-e-vem...”

Na esquina do largo do Pelourinho com a rua Agostinho Comes, ficava a Farmácia Falcão,onde se acha, presentemente, o Varejão, no começo do século, de Manuel da Silva Oliveira Peixoto. Até a década de 30, tornou-se ponto de reunião dos politicos militantes nas freguesias da Sé e do Passo. Na parte da tarde, dava consultas o Dr. Otaviano Rodrigues pimenta, “um dos representantes da plêiade dos caridosos facultativos, que assinalaram, no seio da população, o principal valor do sacerdócio da medicina”. Político de conceito na povoação de Paripe, vindo do século passado, conselheiro municipal, de 1904 a 1907, e de 1916 a 1919, presidia às tertúlias, onde passava em revista os últimos acontecimentos ocorridos na cidade. Cor trigueira, circunspecto, trajava pesado terno de casimira inglesa, escura, colarinho duro, à moda Cosme de Faria, seu contemporâneo de luta politica ,em campo oposto.

Subindo o largo, ficava a Panificação e Pastelaria Águia Central, de Lauriano Martinez y Hermanos, com filial na rua Dr. Seabra.

Segue-se o prédio n.° 25, que pertenceu a um português e onde, na década de 20, funcionou, no último andar, a pensão do poeta Enedino Paulo Abud, nascido a 7 de novembro de 1894, em Aracaju, e falecido a 1 de maio de 1974 na Cidade do Salvador, de ascendência árabe. No pavimento térreo do sobrado n. ° 9, funciona “O Tempo”, primeira casa folclórica do Pelourinho. “Seu proprietário, Joaquim, filho de santo ‘‘feito” na casa de Neiva Branca, conta que, no começo, ele se instalou na casa n.° 3, onde passou cerca de cinco anos, vendendo as bebidas afrodisiacas e o tradicional sarapatel”. Dali saiu para o n.° 18. “Seguiu-se mais dois meses no Terreiro de Jesus e a volta a casa verde, quase esquina com o Museu da Cidade. Ali, ‘O Tempo” conheceu artistas nacionais e internacionais, autoridades dos mais altos escalões, intelectuais, homens de imprensa, o povo e os visitantes, atraídos pelo exotismo da casa decorada com  os raros apetrechos do culto afro-baiano”.

Do outro lado da praça, em 1965, funcionava no prédio n.° 16, a Farmácia Seles, com variado estoque de medicamentos, perfumarias nacionais e estrangeiras. No n.° 18, a Casa Ramos, especialista em discos antigos e usados.

No vértice disfarçado do largo do Pelourinho havia um chafariz, próximo da casa onde residia o Dr. Aristeu de Andrade, “médico mulato, alto e muito popular”. No centro, a feira-livre, transferida para o largo de São Miguel, “para não estorvar o trânsito”.
Atualmente, Aloisio Sousa Aguiar, serventuárïo da Justiça, com incursão pelo jornalismo, nas colunas do Díário de Notícias e A Tarde, é o único remanescente das letras, radicado no Pelourinho.
No campo das artes plásticas, registra-se a presença de Valter Góes, nascido a 7 de dezembro de 1931 no largo, pintor-restaurador, com estúdio localizado no sobrado n.° 7, segundo andar. Tomou cursos livres na Escola de Belas Artes e com o mestre João José Rescala. Trabalhou na restauração das igrejas da Catedral Basílica, Conceição da Praia, Bonfim, Santana, e na Pinacoteca da Santa Casa de Misericórdia. È mais conhecido no exterior do que na Bahia. Seus quadros são encontrados na Itália, Inglaterra, França, Alemanha, Bélgica, Holanda, Suíça, Estados Unidos e Austrália.

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Em 1914, segundo depoimento de Miguel Santana, antigo morador na área, a zona do Passo era uma extensão do Pelourinho, ocupada por “operários, carregadores, negros de canto, vendedores ambulantes de comida, pequenos comerciantes, alfaiates, cabeleireiros, árabes e turcos”.

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Em 1916, José Meneses Nogueira fundou o Café Americano, no Tabuão, torrefação esmerada de café das melhores procedências da Bahia.

Na segunda década, a maior concentração de espanhóis, árabes e sírios, de várias procedências chegados á Bahia, incidia nas Portas do Carmo, Pelourinho e Tabuão. Datam do fim do Império as “levas de imigrantes” que se dirigiam as cidades em busca de mercado de trabalho, A medida que essa nova classe de imigrantes enriquecia, com os lucros obtidos no negócio de miudezas, das casas de pasto, das oficinas mecânicas que se aglomeravam de preferência no Tabuão, onde predominava o ramo de artefatos de couro, monopolizado por italianos, procuravam os bairros da Vitória, Graça e Barra. Atraídos pelo comércio de imóveis, de maior rentabilidade, num gesto de ingratidão, abandonaram a atividade que lhes assegurara posição de relevo na sociedade, com o dinheiro de comerciários, doqueiros, motorneiros de bondes, carregadores, soldados de policia e prostitutas.

Abdale Gaid, sírio, único homem, no Brasil que chegou a possuir um Rolls-Royce último tipo, — sinal de status, tinha casa comercial nas Portas do Carmo.

Na área do Pelourinho, lado esquerdo, está o comércio do Tabuão que começa na Cidade Baixa, em frente ao elevador do mesmo nome e se une ao da Baixa dos Sapateiros. No começo do século, contava com catorze casas: sete lojas de fazendas e sete de miudezas.

Na ladeira do Carmo, principal artéria de acesso ao largo do Carmo, predomina a morada coletiva.

A rua das Flores é praticamente uma extensão da rua Dr. Seabra. Na casa n.° 13 do Maciel, que faz esquina com a ladeira de São Miguel, nasceu Maria Antônia Barreiro Lopez, técnica em restauração, filha de Manuel Barreiro y Barreiro, natural da Espanha, proprietário do prédio e da casa de penhor e joalheria “07”, na rua José Gonçalves (Viaduto da Sé).

O comércio do Pelourinho é variado: bares, casas de pasto, barbearias, quitandas, encanadores, marcenarias, ferro velho, sapateiros e depósitos.

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As repúblicas de estudantes, nos “caga-fumos” americanizados em dancings, as pensões clandestinas, os “castelos” incontroláveis pela polícia, tomaram conta do Pelourinho, a partir da década de 30.

A policia, por volta de 1932, quando delegado o advogado Tancredo Teixeira, deslocou as meretrizes da rua Nova de São Bento, beco Maria Paz (Sabino Vieira), Carlos Gomes, e concentrou-as, desordenadamente, no bairro do Maciel, em franca decadência, de calçamento irregular, passeios quebrados e casario secular parcialmente deformado, caracterizado pela predominância da morada coletiva, sendo o cômodo a unidade habitacional, pondo em relevo o principal traço de sua população, ou seja, a falta de condições econômicas. Com a demolição das ruas que cederam lugar à praça da Sé, na gestão do prefeito Durval Neves da Rocha (1938-1942), o problema tomou aspecto constrangedor. Pelas fresta dos quartos de tabique amontoados de trastes usados, vêm-se os casais famintos de desejo, em acasalamento, na prática do delírio erótico, desvairados, sem o requinte da arte e da poesia das alcovas alcatifadas. A prostituta, semi-nua, cabelos desgrenhados, alquebrada das lutas sexuais brutais, dormindo a sono solto, em estado de abandono.

Pelourinho: zona de cortiços célebres. Ali, Herman Lima e Jorge Amado passaram parte da juventude. O primeiro, no prédio n.° 2, da rua da Laranjeira; o segundo, num sobrado das Portas do Carmo.

Nas sacadas dos sobrados do Maciel, Laranjeira, 5. Miguel, Ordem 3ª  de S. Francisco e Santa Isabel, muitos deles assinalados com os brasões das ordens religiosas proprietárias desses imóveis, em tempos idos, floridos com a presença e poderosas matronas e de sinhazinhas, contemplam-se, hoje, as mulheres públicas em algazarras...

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