quarta-feira, 4 de março de 2015

Silva Campos: O Machado da Boa Vista




Postal J. Mello colorizado, 1904, com título "Azylo São João de Deus, Bahia".
Fonte: http://www.cidade-salvador.com/patrimonios/boavista/boa-vista-antiga.htm

Funciona o asilo de alienados de S. João de Deus, desde 24 de junho de 1874, na antiga Fazenda Boa Vista, da qual foi proprietário e morador, em princípios do século passado [XIX], um fulano Machado, mais conhecido por Machado da Boa Vista […]. Sob o tecto do velho solar do Creso bahiano viveu depois Castro Alves: que ahi foi residencia e casa de saúde de seu pae, o Dr. Antônio José Alves.

O flanco esquerdo e o fundo do terreno do asilo, ainda como no tempo de Machado, estão à margem do caminho do Engenho (p. 7) Velho […] o qual vae dar á estrada Dois de Julho, no lugar denominado Muriçoca, onde forqueava-se, seguindo um ramo ao longo do rio da Lucaia, até o Rio Vermelho, ou seja por onde correm hoje os trilhos do bonde. Galgava o outro a colina fronteira, com o nome de estrada do Bôgum, povoada de lôcos, ou árvores sagradas dos africanos, e de terreiros de paes-de-santo, curandeiros, e casas de candomblé, - pêlo menos alcancei-a assim, uns vinte e muitos anos atraz, - indo desembocar no caminho de cima do Rio Vermelho, próximo á capelinha da Madre de Deus. Todas as terras da Mata Escura, do Engenho Velho e da Lucaia foram dantes conhecidas pêlo nome de – roça dos Machados.

Gozava o homem de geral simpatia e influência entre os filhos da terra, seus compatrícios. Porém os reinós desamavam-no, acoimando-o de prepotente, contrabandista, e conspurcador de virgindades. Bom ou máu, tal era o valimento por êle desfrutado, que se um preso, ao passar em frente da sua residência, corria a agarrar-se á cancela, ou mesmo a um dos moirões da cêrca, invocando: - “Valha-me, seu Machado!” pronto, estava salvo. Ahi estava irremediavelmente livre da enxovia, porquanto ninguém tinha coragem de ir arrancal-o dali. Abandonavam-no os soldados, eclipsando-se num relampago. Que o potentado não era para graças, e acudilhava-se duma cabroeira atrevida.

Como já se ouvissem na Bahia cochichos de independência do paiz, as autoridades coloniaes, a partir do capitão-general, que era o conde dos Arcos (1810-1818), dele muito se arreceavam, trazendo-o cuidadosamente vigiado.

Imprimindo-lhe curioso aspecto, singular na cidade, sôbre o angulo posterior esquerdo do anoso casarão ergue-se uma tôrre quadrada, com quatro pavimentos acima do sobrado. Outrora possuia cinco, ou seis. Não estou bem certo. Das janelas do último, - cuja face anterior ostenta um relógio, coroando-o um campanario singelo, de cujo frestão se pendura emudecido sino, - abarca-se larga, variada e emplgante perspectiva, derramada por todos os quadrantes (p. 8).

Postal Almeida & Irmão, circulado em fevereiro de 1938.
Fonte: http://www.cidade-salvador.com/patrimonios/boavista/boa-vista-antiga.htm
Ao sopé da enconta jaz o Dique […] alteando-se do lado oposto, em seguida, o casario policromo da cidade, eriçado de zimbórios e coruchéos. Compacta na parte central, vae-se disseminando a edificação nos seus extremos, até rarear acentuadamente no sector de nordeste-norte-noroeste, cingiondo-a, ensalsando-a, afogando-a, por todos os lados, em todos os planos do horizonte, o verde vibrante da vegetação arborescente, basta e frondosa que impera na movimentada paisagem da gleba soteropolitana, cuja feição panorámica, por este motivo, é única entre a de todas as grandes cidades brazileiras.

Para além da orgia verde que pompêa dentro do numeroso torrão salvatorense, o mar, ilimitado a léste e ao sul, balizando este rumo o perfil cendrado do morro de São Paulo, que se distingue a olho nú, emergindo das ondas atlanticas; e, de sudoeste a oeste, águas do golfão, contidas pelas terras do Reconcavo ubérrimo, divizando-se deste lado, a binóculo, os lendários templos do Monte e das Candeias. Ao nascente passam vapores, carregando no seu bojo ilusões e desilusões; aparecem velas brancas de jangadas, como enormes mariposas que adejassem o oceano. Maravilhoso painel!

Num dos andares daquela tôrre, que para os bahianos devia ser sagrada, o divino Cecéo teve os seus aposentos, e ahi lhe espontaram na imaginação muitas das suas imortaes poesias […]. 

Ora, do alto da tôrre, Machado descobria todos os navios que demandavam a barra, fazendo sinaes aos que lhe traziam contrabando. Segundo outros, do empinado sito vigiava constantemente e alguma nau de guerra se aproximava, e vinha, talvez, por conduzil-o preso ao Reino. Terceira versão, e única merecedora de crédito. Possuia Machado crescido número de embarcações, e dali, sempre que uma vela surgia no horizonte, como o Pedrossem (p. 9) ou Pedro Cem da tradição portuense, empunhava o óculo de alcance com o fito de examinal-a, a ver se eras das de sua propriedade.

Extenso subterraneo, de entrada e saída secretas, conduzia á margem do Dique, garantindo-lhe segura retirada, no caso de se encontrar ameaçada a sua liberdade. Ou seria esconderijo da sua ourama e prataria. Se é um facto, ou pura lenda, a existencia de tal galeria, ainda hoje poder-se-ia apurar. Por mais de uma vez ouvi de antigos funcionários do asilo que se fazendo uma escavação nos fundos do edifício, não sei a que fim, toparam-se vestígios de uma construção subterranea, de pedra e cal, e moedas de cobre muito antigas […].

Fundeou certo dia em frente á cidade um navio de guerra de sua majestada fidelíssima, vindo com o pretexto de efectuar sondagens na bahia. Que da procedencia de todas as embarcações aportadas Machado cuidadosamente indagava, receoso como vivia, por ser objecto das desconfianças do govêrno da colonia.

Em breve espaço de tempo o comandante da nau teve arte de se meter de amizade com o ricaço. Todos os domingos, passeavam os dois a cavalo, - desporto, outrora, muito da predileção do burguez bahiano; - e jantava o marujo no solar da Boa Vista. Então, nas suas palestras, o oficial aludia sempre á marcha dos trabalhos que chefiava: em tal ponto, assim, assim, a bahia tem tantos metros de profundidade; em tal outro, tantos; e dêsse jeito por deante. Que quando foi um dia de festa real, Machado recebeu convite do amigo recente para ir jantar a bordo do seu navio, e visital-o.

Muito cheio de si, pois afirmara-lhe o mesmo, que, excepto o conde general, ninguem mais tivera a honra de ser alvo de semelhante distinção, Machado encontrou-se mui cedo pizando o convez da belonave, todo chibante, todo almisracado, exibindo as suas mais finas vestes, e mais custosos atavios.

Decorridos alguns minutos apoz a sua chegada a bordo, encostou num batel, dêste saltando dois guapos oficiaes, declarando não ter sido possivem a Dom Marcos de Noronha comparecer á nau (p. 10), fazendo-se entretanto representar por êles, que pertenciam á sua ala de ordens. Nada! Simples codilho. Os dois militares faziam parte da guarnição do vaso de guerra…

Ao entardecer, depois de animada prosa, de haverem percorrido o navio de cima a baixo, de emborcarem iterados codórios, sentaram-se á mesa. O bródio foi lauto, sendo Machado objecto das mais requintadas atenções por parte de toda a oficialidade. Um encanto. Nunca imaginara ver-se metido em semelhantes funduras, não obstante os seus milões de cruzados. O arranjo da sua sala de jantar, a riqueza da sua baixela, o sabor dos seus vinhos, a variedade e o preparo dos pratos da sua cozinha, e o serviço da sua famulagem eram ridiculos, em comparação com o que testemunhava naquele banquete sob a coberta da alterosa fragata d’el-rei de Portugal, cuja artelharia disparara fragorosamente ao pôr do sol, robombando pêlas quebradas verdejantes do Recôncavo.

E da cidade, pensou, era êle o único ali presente! Onde estavam áquela hora os nobres da terra, que só viviam a alardear limpeza de sangue, a esmerilhar linhagens, e a ostentar brasões? Onde estavam áquela hora os emproados descendentes de façanhudos e truculentos barbaças, campeadores de mouros, galegos leonezes e castelhanos, no tempo em que Adão era cadete; do famoso Egas Moniz, vo velho Garcia d’Ávila, e do Diogo Alvares, o solerte vianez que viveu vida folgada e milagrosa pêlas amenas paragens da Graça e da Vitória, fazendo de sultão da bronca gente tupinambá, amimado e disputado pêlas Venus cor de cobre? Onde se encontravam áquela hora os orgulhosos Pires, Sodrés, Goes, Bulcões, Vianas, Monizes, Rochas Pita, Aragões, Albuquerques, Argôlos, e outros de igual prosápia? Mergulhados no tédio costumeiro dos seus sorumbáticos casarões, enfiados nos seus chambres, nos sdeus barretes de dormir, atafulhando as ventas de simonte, e cavaqueando puerilidades. Ao passo que êle se achava de gorra com tão distinta rapazeada, saboreando finíssimas iguarias, como só mesmo na côrte se sabiam preparar, e entrando na pinga legítima de Braga. Moer-se-iam de inveja, quando de tal soubesses (p. 11). Importar-lhe-ia muito! O seu ouro, afinal de contas, valia bem os pergamihos deles, E, a impar de satisfação, levantou-se, erguendo a sua taça, num brinde á meajestada real, que, por certo, não seria nenhuma obra prima de oratória […].

Ancorada em posição adrede escolhida, a fragata levou os ferros, logo ao escurecer, sendo o ruídonda faina mascarado pêlo troar das peças, e ficou amarrada a uma boia. Quando começou o refluxo da maré, - caía o nordeste, como habitualmente acontece, á noite, nestas paragens, - içou os cutelos, desprendeu-se da boia, e fez proa para a entrada da bahia. Algum tempo depois, eil-a a arfar descompassadamente. Sentiu Machado a pulga atraz da orelha, e, sem atender às explicações da companhaia, saiu célere á coberta. Estava clara a noite, e viu logo que o navio, de velas desferradas, vogava já fora da barra. Pedindo explicação do facto ao presumido amigo, que o seguira, poz-lhe este a mão sôbre o ombro, respondendo:

- Vossa Mercê está preso, em nome de sua majestade.

Segundo reza a tradição, a propósito da qual não li até hoje a menor referencia, o próprio capitão-general ignorava a missão que trouxera a fragata ao porto da cidade.

Que de verdade se conterá nesta historia? Será protagonista da mesma o negociante Manoel José Machado, que o Principe Regente Agraciou com o habito de Christo, em 1808, quando de passagem para o Rio de Janeiro? Baltazar da Silva Liaboa, nas “Memórias da Capitania de Ilhéus”, conta de maneira semelhante a prisão de Sebastião da Ponte, o lendário régulo da Bahia quinhentista, na bahia de Tinharé, pêlo comandante de um navio real (p. 12).



SILVA CAMPOS. João da. O Machado da Boa Vista. In: _____. Tradições Bahianas – Separata da Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia nº 56, 1930. Bahia: Secção Graphica da Escola de Aprendizes Artífices, 1930, p. 7-12.
 

Fonte: http://www.culturatododia.salvador.ba.gov.br/vivendo-polo.php?cod_area=8&cod_polo=33






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