No
diadema de montanhas que ornam a cidade do Salvador, ha engastada uma formosa joia
de que nunca soubemos aquilatar o valor, nem apreciar as bellezas nativas,
porque as artisticas ainda ninguem lh’as accrescentou para lhe realçar o
merecimento e as perfeições estheticas. Essa perola […] é o bellissimo lago que
a próvida natureza collocou entre as colunas que margeam a cidade pelo lado
oriental, e que o estrangeiro contempla admirado da sua natural formosura, e
ainda mais do nosso indesculpavel despreso.
Tororó – do tupi – “Itororó” que quer dizer regado pequeno. 1908 - PMS/FGM - Arquivo Municipal de Salvador. |
Lembramo-nos do dique, nome com que ha centenas de annos designa esse lago a população desta capital, não para o aformosearmos ainda mais, e para o convertermos em centro de goso e recreio publico, mas simplesmente para lhe pedirmos que nos mate a sêde com as suas aguas, que ora tranquillas reflectem como vasto espelho as encostas e a ramaria dos arvoredos marginaes, ora de leve encrespdas pela brisa da tarde, vão brandamente em minusculas ondas açoitar as ribanceiras por entre a folhagem sempre verde dos arbustos e dos juncaes.
1920 - http://www.cidteixeira.com.br/ |
O lago é graciosamente sinuoso, de largura variavel, e tem, mesmo agora, em alguns logares, uma profundidade superior a sete metros; a sua extensão é de cerca de dous kilometros, e já foi um pouco maior quando, ainda no meiado do seculo que finda, as suas aguas vinham até á Fonte Nova e á calçada da Fonte das Pedras. Por esse tempo a sua profundidade devia naturalmente ser maior dous ou mais metros do que a actual, pois que as aguas nivelavam-se quasi com o aterro ou muralha que no sitio chamado Moinho as impede de se precipitarem no riacho Lucaia, chegando mesmo a galgal-o nas fortes invernadas, corno ainda não ha muitos annos succedeu (5 de Junho de 1880) occasionando grandes inundações. Nesse aterro ha dous sangradoiros ou bueiros por onde se escoam as aguas excedentes ao nivel ordinario; as que saem por um delles moviam o rodizio de um moinho para cereaes, que ahi possuiu ha muitos annos, e não sei se estabeleceu prirnitivamente, o cidadão Francisco Ezequiel Meira, ha muito fallecido; este moinho passou successivamente a outros possuidores, e ainda lá funcciona, mas agora com intermittencias e com agua represada por muitas horas, por ser insufficiente, em virtude da sêcca, a que ainda corre por um dos bueiros para a calha do moinho. (1)
1923 |
Do lado da Fonte Nova, e em alguns pontos de uma e outra margem as terras arrastadas pelas aguas pluviaes, e por pequenos desmoronamentos das ribanceiras têm, no correr dos tempos, encurtado e estreitado o dique, concorrendo em grande parte para o mesmo resultado os entulhos com que alguns proprietarios de terrenos confinantes procuram amplial-os para cultura, sem que jamais as autoridades competentes procurassem obstar áquelles damnos fortuitos, e a estas usurpações intencionaes.
Adolpho Moreira de Oliveira, Dique do Tororó - 1928. |
Pode-se dizer que o dique actual (porque houve outros menores que occuparam o leito da rua de Valla) está virgem de obras d’arte, mesmo das que poderiam efficazmeme impedir a progressiva diminuição da sua área; pelo contrario, tem-se permittido cercear a sua superficie com obras particulares, que o têm estreitado, privando-o em parte da sua antiga formosura.
Fonte: Câmara Municipal de Salvador. |
O dique era outr’ora povoado de jacarés, que constituiam um perigo para as pessoas que se banhavam nas suas aguas; hoje são raros alli estes ferozes amphibios, si é que ainda se encontra algum desgarrado.
Outro perigo,
segundo a tradição popular, é que, em certos logares, pessoa que caia nas suas
aguas fica presa no lodo, e só depois de adeantada putrefacção sobe á
superficie.
Houve um tempo
em que a extremidade contigua á Fonte das Pedras, onde era diminuta a
profundidade e firme o sólo subjacente, foi o logar de preferencia para lavar
cavallos e banhar negros novos sarnentos; e numerosos outros pontos eram, como
ainda hoje, frequentados por lavadeiras e banhistas. Estes eram quasi
exclusivamente os usos das aguas do dique, pois sempre tiveram a reputação de
não serem boas para bebida, e de produzirem sezões e outras formas de
impaludismo.
1920. Fonte: SECULT/BA.
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O dique está ligado á nossa historia por diversos factos que convém recordar. Quanto aos primeiros tempos coloniaes pouco ou nada se sabe a respeito desta lagôa.
O proprio
Gabriel Soares, aliás tão minucioso na descripção desta cidade, nem sequer
menciona a sua existencia no seu famoso Tratado
descriptivo do Brasil (1587); isto será devido, talvez, a que a cidade
nesse tempo era limitada á actual freguezia da Sé. Elle falla apenas de uma
ribeira d’agua que nascia na horta do mosteiro de S. Bento, ribeira que mais
tarde tomou o nome de Rio das Tripas, actualmente canalisado em grande extensão
por baixo da rua da Valla, aberta pelo meiado deste seculo. E’ tanto mais
notavel este silencio de Gabriel Soares, quanto elle menciona as muitas e grandes
roças e grangearias que esta cidade possuia em uma e duas leguas em redor, e suggere
já a utilisação das aguas dessa ribeira nas fortificações da cidade. Isto
provirá, talvez, de ser a esse tempo o actual dique uma pequena e pouco
importante lagôa, e, além disso, mais afastada da velha capital. Com effeito,
si o paredão ou barreira atravessada na estreita garganta do sitio denominado
Moinho é uma obra d’arte, como tudo parece indicar, a profundidade das aguas e
a largura e extensão da bacia deveriam ser muito inferiores ás actuaes. Suppressa
aquella barreira as aguas se escoariam promptamente pelo valle do riacho
Lucaia, ficando em sêcco muito grande parte do terreno que ellas actualmente
cobrem; e nem haveria razão para se dar o nome de dique a uma simples lagôa
natural; a propria configuração do terreno indica ter sido entre dous outeiros
convergentes o curso natural das aguas que dão origem ao riacho Lucaia, e que
foi nesse logar estreito que se procurou represal-as e estendel-as até á Fonte
Nova e mesmo além, o que ainda hoje se poderia fazer alteando o açude, e
vedando o escoamento para a Lucaia.
E’ certo que
durante a occupação desta cidade pelos hollandezes, de 1624 a 1625, eles procuraram
fortificar-se nella por todos os modos e por todos os lados, inclusive o de léste,
e converteram todo o valle que vae da Barroquinha e da horta de S. Bento até ao
logar denominado hoje Sete Portas, e talvez ao proprio dique, em um vasto fosso
aquatico, em torno da cidade, represando as aguas em diversos logares com paredões
ou trincheiras, formando os diversos diques que Barleu, historiador hollandez,
figura na planta da cidade, e chama ao fosso aguas mediterraneas. Estas aguas enchiam todo o valle e suas anfractuosidades,
como a da Lapa, Desterro e do Sangradouro, comrnunicando provavelmente com as
do dique; digo provavelmente porque não conheço documento historico
bastante.explicito a este respeito, e a planta a que me refiro não vae alem do
sitio do actual arco da rua da Valla. Habeis como eram em materia de diques,
com os quaes disputam ao mar grande parte do seu territorio, os hollandezes teriam
tambem construido o nosso, que com os demais da rua da Valla aproveitava á sua
defeza dificultando o acesso á cidade sitiada pelas tropas portuguezas, que os
attacavam por tres pontos, S. Bento, Carmo, o local onde depois se edificaram
as igrejas do Desterro e Santa Anna, junto ao referido fosso aquatico.
Verdade é,
segundo refere Accioli, que o general hollandez Van Dort, primeiro governador
da cidade, «para maior segurança da capital pretendeu tornal-a uma ilha abrindo
o dique, que fica do lado oriental da mesma cidade; mas renunciou a este
projecto, por achar muito grande o espaço de terreno que lhe era necessario
cortar.»
O mesmo Accioli
diz, que quando as tropas portuguezas desembarcaram em Itapagipe e Santo
Antonio da Barra encontraram os hollandezes fortificados nos baluartes das
portas de S. Bento e do Carmo, tendo egualmente collocado artilheria nas eminencias
do natural fosso aquatico já mencionado, e conhecido por Dique.
Pouco adeante dá
o mesmo historiador este ponto central, junto ao dique, occupado por 1700
homens portugueses e hespanhoes, com o fim de attacarem por alli a cidade, por
ser mais demorado e difficil fazel-o pelas portas de S. Bento e do Carmo.
Ora, si Van Dort
renunciou a ilhar a cidade abrindo o dique, fazendo que as aguas a
contornassem, deixando apenas dous isthmos, um entre a baixa dos Sapateiros e a
praia, e outro entre a Barroquinha e o littoral da Preguiça, e si foram
artilhadas pelos hollandezes as eminencias contiguas ao fosso aquatico, aquella
obra de defeza já estava realisada quando os portuguezes acamparam na logar das
Palmas ou das Palmeiras, isto é, no alto do Desterro e onde hoje está a matriz
de Santa Ama. E a não ser assim não se comprehende como Barleu representa na
referida planta da cidade, não o dique ou fosso natural que Van Dort pretendeu
mas não ousou aproveitar para converter a cidade em ilha, mas a serie de diques
parciaes de que ella de facto estava cercada.
Na segunda
invasão dos hollandezes, em 1638, receiando-se que elles pretendessem attacar a
cidade por este lado, foi de novo fortificada, diz Accioli, a antiga trincheira
das Palmas, junto ao dique, o que importa dizer que ainda existiam as aguas
mediterraneas indicadas por Barleu; e que ellas continuaram a servir á defeza
da cidade até 1716 parece deprehender-se do facto de ter n’esse anno o vice-rei
Conde de Villa Verde tratado de melhorar as fortificações com diversas obras, e
entre ellas a conservação do fosso aquatico da cidade, denominado Dique, sob a
direcção do brigadeiro engenheiro João Massé, vindo de Lisboa (Accioli.)
E’ certo, porém,
que si o fosso aquatico precisava de obras de engenharia para a sua conservação,
é que elle não estava nas condições em que o deixaram os hollandezes, é isto
disse expressamente o fallecido J. A. do Amaral no seu Resumo chronologico e noticioso da provincia da Bahia, em 1885, nos seguintes termos: «Esse engenheiro (Massé)
e os de nomes Miguel Pereira da Costa e Gaspar de Abreu, incumbidos do exame
das fortificações, haviam, em 23 de Junho do anno anterior (1715,), informado
que era preciso que o Dique tornasse ao estado em que os hollandezes o puzeram,
por ser uma defeza de muito grande coasequencia para esta Praça e obra de
eterna duração.»
O que não é exacto
é o que diz o mesmo Amara, que o dique fôra formado pelos hollandezes no anno
de 1640; ha aqui engano de data, porquanto a segunda invasão foi em 14 de Abril
de 1638 e durou só até 29 de Maio seguinte, em que elles, sempre repellidos,
abandonaram a empreza de reconquista da capital. Elles não poderiam ter
emprehendido essa grande obra senão durante a occupação da cidade, que foi de 9 de
Maio de 1624 a 30 de Abril de 1625, obra deante de cuja magnitude recuou o
governador Van Dort, e terá sido executada por algum dos seus successores no
governo e na direcção da défeza.
O mesmo citado Resumo contém ainda algumas outras
interessantes informações, entre as quaes a de ter sido o dique formado de um
lado que existia, e das aguas que nascem nas baixas do quintal do Convento de S.
Bento, origem do regato denominado Rio das Tripas, engrossado pelas de
diferentes brejos, onde se fizeram diversas represas. Diz mais que uma dessas
represas era na baixa do Convento do Carmo, outra nos brejos do Convento de S.
Francisco, entre as ladeiras de S. Miguel e a da rua da Poeira, e a terceira
entre a ladeira da Palma e a da Praça; o que está de accordo com a citada
planta de Barleu, Mas é certo que sem outras represas não se poderia
estabelecer a continuidade do fosso aquatico até communicar com o dique actual,
especialmente uma que no logar denominado hoje Sete Portas impedisse as aguas de
correrem para o rio Camorogipe.
Terá sido
igualmente indispensavel outra represa lateral para obstar á descida das aguas
do fosso da baixa dos Sapateiros para o Taboão.
O mesmo autor
allude á abertura da rua da ValIa e á canalisação do Rio das Tripas, affirmando
que nas Sete Portas se lhe deu nova direcção para o Camorogipe, ((privando-se
por esta forma, que fosse desaguar no dique, como outr’ora.)) Que esse rio
formado pelas aguas das fontes e brejos da rua da Valla não poderia desaguar no
dique por declive natural, sem alguma obra d’arte que o represasse, é evidente,
considerando a grande diferença de nivel entre aquelle sitio e a Fonte Nova,
ainda mesmo que aqui esse nivel tenha sido, como é provavel, mais baixo do que
é hoje, e o nome de Sangradouro que ainda hoje si conserva parece indicar que
outra represa ahi existiu entre a collina do Barbalho e a que fica sobranceira
as Sete Portas; de outro modo ficaria nesse ponto interrompido o fosso aquatico
entre o Moinho e a Barroquinha; e tambem a répresa do Moinho, a unica que resta
de quantas se attribuem aos hollandezes para a defeza da cidade, falharia a
este objectivo, si não tivesse a vantagem de assegurar a continuidade do fosso
aqüatico sem deixar uma interrupção que só aproveitaria aos sitiantes,
facilitando-lhes o accesso á eminencia do Desterro. Por essa continuidade o
fosso aquatico a partir do Garcia até ao Sangradouro ou Sete Portas,
recurvando-se e correndo d’ahi em direcção opposta até á Barroquinha e a Lapa, ficava
quasi duplicado em extensão, não permittindo a facil occupação daquella eminencia
e da trincheira das Palmas senão ás tropas que desembarcaram em Santo Antonio
da Barra em direcção ao alto de S. Bento.
Como quer que
seja, parece certo, ou muitissimo provavel, que o que resta desse enorme fosso
aquatico é o dique actual, que lhe conserva o nome e a tradição; e quanto a ser
obra d’arte a represa do lado do Moinho, facil seria verificar pelo exame da
natureza do terreno e de quaesquer materiaes que a constituem.
Em 9 de
Fevereiro de 1859 foi aberta ao transito publico uma estrada para o arrabalde
do Rio Vermelho, margeando o dique pelo lado de leste; foi-lhe dado o nome de
Dous de Julho; e mais tarde, 8 de Junho de 1876, foi inaugurada uma linha
ferrea assente no leito da mesma estrada pela companhia de Trilhos Centraes.
Esta linha
cortou alguns braços do dique, dous dos quaes foram mandados entulhar pelo
presidente da provincia, por arrematação, obras que foram executadas pelo
director da mesma companlna. Esta diminuição da área do dique, e as chuvas
torrenciaes que cahiram em Junho de 1880 occasionaram a destruição de grande
parte da represa junto ao Moinho, e a massa enorme de agua que se precipitou
para o riacho Lucaia destruiu em grande extensão o eito da linha ferrea, e urna
fabrica de lapidação de diamantes servida por agua do mesmo dique.
A primeira idéa
de embellezamento das margens desta lagoa data de 1872, segundo refere o citado
Resumo, quando «a lei n. 1231
concedeu privilegio por 50 annos para a abertura de uma communicação entre o
dique e o mar, no logar mais conveniente, bem como para a construcção de uma
linha ferrea do Rio Vermelho á Lapa ou ao Largo do Theatro Publico, o
ajardinamento da margem do dique, etc., etc., conforme fóra requerido por
diversos cidadãos, que posteriormente fizeram cessão do dito privilegio.»
Nenhuma dessas
obras mencionadas no privilegio foi realizada até hoje, com excepção da linha
ferrea, cuja execução foi concedida pela camara municipal á empreza de Trilhos Centraes, e approvada por acto
do governo provincial, de 18 de Junho de 1874.
Este
melhoramento em relação ao dique, apenas consistiu em tornal-o mais accessivel
ás vistas da população, com a desvantagem de lhe diminuir um pouco a superficie
com certos aterros desnecessarios, tendo podido a linha atravessar em
pontilhões os braços, entulhados por iniciativa do proprio governo, que chamou
concurrencia para esta obra, como acima ficou dito, em 6 de Junho de 1878.
Posso repetir,
portanto, que o dique está virgem de obras d’arte que o embellezem e o
convertam em centro de recreio publico a que elle se pode prestar, e como é
necessario em uma capital como a nossa, onde não abundam as diversões, e ha um
passeio publico, pode se dizer que nominal, quasi sempre deserto por não
ofíerecer attractivo algum que o recommende á concurrencia dos nossos concidadãos
e dos forasteiros, e um denominado parque no Campo Grande, que por emquanto nem
é parque nem jardim, e só tem de importante o magnifico monumento commernorativo
da nossa emancipação politica, que o publico em geral se contenta em contemplar
de fóra.
O dique é
povoado de diversas especies de peixes, em geral de pequenas dimensões, que
nunca foram estudados nem classificados scientificamente. Houve em tempo quem
se propuzesse a cultivar alli outras e mais uteis especies de peixes para abastecimento
do mercado; foi o Dr. Francisco Antonio Pereira Rocha, um dos concessionarios
da Companhia do Queimado, que supponho ter pretendido para aquele fim um
privilegio, não me lembro em que data, mas é certo que elle publicou sobre a
piscicultura do dique um folheto em que expunha as particularidades e as vantagens
do seu projecto que, corno outros sobre a utilisação do dique, ficou no
esquecimento até hoje. (2)
Eram vistas alli
tambem noutro tempo algumas grandes cobras aquaticas do genero boa, entre elas
a sucuriuba (boas anacondo), que, como os jacarés, eram mais numerosas quando
desertas ou pouco frequentadas as margens do dique. E’ raro hoje ver-se alli um
ou outro destes reptis.
Não consta que
tenha sido estudada a hydrographia desta lagôa, nem mesmo determinada a sua
profundidade em diversos pontes da sua extensão. nem a constituição geologica
das suas margens, a natureza da vasa negra que em alguns logares se encontra no
fundo, estudos que, como outros referentes ao dique, já deveriam ter sido
feitos. Ha quem aflirme que um caibro de quarenta palmos ou mais mergulha todo
na agua e no lodo.
E’ certo que em
um sitio fronteiro ao novo bairro do Tororó, a commissáo recentemente incumbida
de estudar as aguas do dique encontrou uma profundidade superior a sete metros,
e em outro proximo ao Garcia, superior a cinco metros, o que faz presumir,
considerando a sua grande largura em alguns logares e extensão de dois
kilometros, a massa enorme de agua ali represada, fornecida pelas nascentes,
mesmo em épocas, como a presente, de prolongada sêcca.
Eis o que a
respeito do dique posso dizer nesta breve resenha historica e descriptiva, que
outros melhor informados poderão corrigir e augmentar. Não devo, entretanto, omittir
aqui mais um projecto recentemente apresentado para o seu embellezamento e
utilisação.
Este é, sem
duvida, o mais arrojado de todos, e tambem o que maiores vantagens póde
offerecer á população desta capital no presente e no futuro.
Tratando-se de
solemnisar na Bahia o quarto centenario do descobrimento do Brazil, a grande e
selecta commissão encarregada de indicar e promover os meios e modos de
commemorar condignamente esta data primordial e gloriosa das ephemerides do
Estado da Bahia, entre outros alvitres suggeridos para esse fim, teve de
occupar-se com um projecto realmente soberbo, e digno ao mesmo tempo desta
capital e do grande aconteceimento historico que se pretende commemorar. E’
nada menos do que abrir uma rua subterranea das margens do dique á cidade
baixa, ajardinar os terrenos adjacentes, construir alli um grande edificio para
uma exposição industrial, agricola, artistica, etc.; outro pata um museu, e um
jardim botanico e zoologico annexos, etc., para serem inaugurados nas festas do
centenário.
Tudo isto é
magnifico, e a realização de tão grandioso projecto viria absolver-nos de sobra
do menos preço em que por longos annos temos deixado aquelle esplendido lago e
terrenos marginaes; mas.. . ha, infelizmente, a receiar dous obstaculos principaes
a que a Bahia mostre que é digna de possuir aquella preciosa dadiva da natureza,
elevando-a á estima que ella merece: o primeiro é a estreiteza do tempo, o
segundo o avultado dispendio que tal emprehendimento exige.
Vencidos que fossem
ou que sejam estes obstaculos, a Bahia, talvez mais do que nenhum outro Estado,
daria ou dará ás festas commemorativas do quarto centenario um excepcional
esplendor, legando ao mesmo tempo ás gerações futuras um monumento para
recordar-lh’as com honrosa gratidão.
Tenha ou não
tenha exito satisfactorio no todo ou em parte o alludido projecto elaborado por
distinctos profissionaes em engenharia, o certo é que o dique não pode nem deve
continuar no abandono em que se acha de todo e qualquer cuidado, ao menos de
conservação e saniamento: elle tende constantemente a estreitar-se, corno já
acima ficou dito, e é peceptaculo obrigado de immundicias e detritos de toda a
especie, provenientes das povoações visinhas, da lavagem de roupa, animaes
mortos, etc.; é em grande parte por isso que as suas aguas são olhadas com
justificada suspeita de improprias para bebida, dependendo ainda de uma
commissão especial nomeada pela Intendencia o juizo definitivo sobre as suas
qualidades nocivas ou innocuas para uso da população em tempos ordinarios, e
principalmente na actual crise aquaria.
E quando,
infelizmente, venha tambem a falhar, como os precedentes o projecto apresentado
á grande commissão do Centenario do Brazil, dê-se começo alli a alguns estudos
e a obras de necessidade, como sejam desobstruir o prolongamento do Dique
proximo á Fonte Nova, restituindo-lhe a sua antiga extensão: construcção de
pontes em logares convenientes, especial mente urna, pouco dispendiosa, que communique
o novo e já populoso bairro do Tororó com a margem oriental, onde a passagem de
uma para outra se faz por meio de saveiros. Uma estrada pela margem occidental
entre a Fonte Nova e o Polytheama ou Campo Grande offereceria ao publico não
pequena commodidade, e convidaria, talvez, os proprietarios a iniciar
edificações nos terrenos adjacentes.
As aguas deste
lago poderiam tambem ser utilisadas para as bacias, chafarizes e repuxos do
Campo Grande por meio de machinismos que as levassem a depositos na conveniente
altura, não só para irrigação, como para jorrarem por occasião de festas
nacionaes, ou de divertimentos publicos.
Quando se não
faça tudo, faça-se desde já alguma cousa para que o Dique não continue
desaproveitado como até agora; e si não pudermos ainda desta vez reunir alli o
util e o agradavel, procuremos conseguir o primeiro ao menos, emquanto
esperamos que melhores tempos, e mais felizes ou mais corajosos emprehendedores
nos tragam algum dia o segundo.
(1) Em 1876 este
moinho estava, e ainda esteye por alguns annos, convertido em fabrica de
lapidar diamantes.
(2) Depois de
escriptas estas linhas, verifiquei que effectivamente o Dr. Rocha arrendou o
dique á Camara Municipal por 17 annos, com o privilegio de explorar alli a industria
da piscicultura, povoando-o de peixes fluviaes e lacustres de especies
indigenas e européas, qu forneceria ao mercado a 200 réis o kilo.O folheto alludido tem a data de 30 de Maio de 1876; descreve os diversos processos conhecidos de piscicultura nos paizes estrangeiros, e termina convidando para a execução do projecto socios e capitaes, que nunca appareceram.
(3) Esta cornrnissão, composta dos Drs. Manuel Joaquim Saraiva. (que, infelizmente, falleceu pouco dias depois de iniciados os seus trabalhos) Augusto Vianna e J. F. da Silva Lima, depois de expor os resultados das investigações chimicas e bacteriologicas a que procedeu, concluiu assim o seu parecer: “Portanto, baseados nas analyses chímica e bacteriologica, apezar de não ter esta revelado a presença de germens pathogenos, chegamos á conclusão de que a agua do dique não pode ser utilisada impunemente, sem que primeiro soffra rigorosos processos de purificação que a tornem incolume, processos estes que demandam não pequeno periodo de tempo, certamente incompativel com a urgéncia da actua1idade.
Bahia, Fevereiro de 1899
Dr. Silva Lima
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