O culto do Senhor do Bomfim, uma das mais vivazes tradições
do Brasil, basta por si só para documentar a maneira como o povo bahiano
entretêm as suas relações com o divino e cultiva as suas crenças catholicas.
Já estamos, é verdade, um pouco longe dos pomposos oitavarios
em que o bairro do Bomfim, e toda a peninsula por elle dominada, se povoavam de
caravanas vindas do Reconcavo, dos altos Sertões da provincia e d’além do S.
Francisco, para tomarem parte na representação do estupendo martyrio que tinha
por theatro a airosa collina de Itapagipe. Ainda em 1881 podia escrever, sem
exagero, um chronista local: “Acódem á importante festa do Senhor do Bomfim, a
primeira da Bahia e talvez de todo o Brasil, mais de 30 mii pessoas de todas as
classes da sociedade e de toda parte”.
Hoje o sertanejo contenta a fé, indo mais perto dos seus
campos geraes e das suas serras, á gruta do Bom Jesus da Lapa. O habitante da
matta e dos Engenhos vae ao santuario de Nossa Senhora das Candeias, a Lourdes
bahiana. As peregrinações de Itapagipe diminuiram de volume; as casas dos romeiros, as que restam de pé,
já se alugam a familias da capital para estações de verão e mudança de ares.
O programma da festividade externa tambem soffreu
modificações que a grande massa dos crentes não approvou, mas a que afinal se
resignou, coagida pelas reiteradas prohibições ecclesiasticas, a que todavia
foi preciso o reforço da policia armada.
Na quinta-feira da oitava do Bomfim era costume antigo da
plebe fazer a lavagem do templo. Essa lavagem, á parte sua intenção inicial,
excedia tudo quanto no correr de 1534, interdizia n’estes tenuos o bispo de
Evora:
“Defendemos a todas as pessoas ecelesiasticas e populares,
de qualquer estado ou condição que sejam, que não comam nas egrejas, nem bebam,
com mesas nem em mesas; nem cantem, nem bailem em ellas, nem em seus adros, nem
os leigos façam seus ajuntamentos dentro d’eIlas sobre coisas profanas; nem se
façam nas ditas egrejas ou adros d’ellas jogos alguns, posto que sejam em
Vigilia de Santos ou de alguma festa, nem representações, ainda que sejam da
paixão de Nosso Senhor Jesus Christo ou de sua Ressurreição, ou nascença, de
dia nem de noite, sem nossa especial licença, porque de taes actos se seguem
muitos inconvenientes, e muitas vezes trazem o escandalo no coração d’aquelles
que não estão mui firmes na nossa Santa fé catholica, vendo as desordens e
excessos que nisto se fazem”.
A “lavagem do Bomfim”, tantas vezes suspeitada de
africanismo e selvagismo, tem, como se vé, os seus antecedentes ou, pelo menos,
os seus precedentes historicos na velha e civilisada metropole portugueza. Era,
na verdade, um pandemonium ás portas do céu, uma assombrosa bambochata, cujas
liberdades com o sagrado chegaram ao delirio da irreverencia. E perdem-se por
isso aquelle pittoresco e eloquentissimo quadro vivo de costumes.
Quem se não recorda na Bahia dos longos sequitos de
aguadeiros e carroceiros, a guiar cavallos enramados com folhagem de pitanga e
barulhentas carroças atacadas de lenha, pela Calçada do Bomfim até o adro da
egreja, onde já tripudiavam creoulas e mulatas, gente de todas as castas e
matizes, com a bateria de tinas, bacias, esfregões e vassouras? Quem a viu, que
a esquecesse, aquella extraordinaria festa d’agua e alcool, aquelle enorme disparate
de bemditos e chulas, de rezas e
gargalhadas, de gestos contrictos, e bamboleios deshonestos? A Venus hottentote
lá exhibia as suas opulencias carnaes e os seus rebolados de dançarina; os
ranchos de aguadeiros despejavam os barris e sambavam com garganteios
estentoreos. Soavam bacias como sinos rachados; o estrepito das palmas formava
um rnatraquear ensurdecedor. Num mesmo instante joelhos que se dobravam deante
dos altares estiravam-se agilmente nos passos e voltas do mais atrevido
fandango. Emquanto as vassouras chapinhavam nas lages da nave, olhares caprinos
incendiados em chammas alcoolicas, devoravam collos negros e infantes, onde as
contas do rosario vibravam como guizos de mascarados.
Não faltavam ao espectaculo nem as gaiatices do espirituoso
capadocio, nem musicas apropriadas ao tom da colossal pagodeira.
O excesso provocou a hostilidade systematica do clero e da
imprensa. Mas tiveram que suar o topete antes que a lavagem, se curasse dos seus desatinos e loucuras de Entrudo. Annos
houve em que as portas da capella, trancadas por ordem superior, escancaravam-se
momentaneamente, e como por encanto, á invasão das hordas devotas. E o diluvio
repetia-se.
É assim que se expande o catholicismo do mestiço bahiano: a
sua religião não dispensa, por nenhuma consideração, o apparato e o estrondo
carnavalesco. Elle crê e ora, ouve missa e communga, mas não faz voto de
renunciar o rico prazer de dar vivas ao Santo, como os dá ao carro do caboclo
em 2 de Julho e ao estandarte dos Fantoches
e do Cruz Vermelha. Murmurou-se
muito, aqui ha tempos, contra certas medidas restrictivas tomadas pela
autoridade archiepiscopal acerca das procissões, e contra a ordem, emanada do
mesmo poder, que vedou ás philarmonicas e bandas marciaes tocarem no recinto
das egrejas. Tudo isso é necessario, é indispensavel ao temperamento religioso deste
alegre povo. Com elle perdem o seu tempo os zelosos pastores evangelicos que
tanto se afadigam por attrahil-o ás ceremonias frias, simplissimas e severas
das suas seitas protestantes.
O bahiano quer entrar no céo, mas com alardo e fanfarra.
A festa do Bomfim continúa a congregar no formoso bairro a
maior massa de gente que para essas devoções costuma arrojar-se de fóra e
dentro da cidade. Ou porque o Senhor d’aquelle outeiro lhe prodigalisa mais
graças, ou porque o outeiro onde se eleva a casa do Senhor offereça campo mais
propicio aos folguedos do povo, nesta terra de tantas egrejas, ha seculo e
meio, tem logrado intensa popularidade. - Não ha invocações novas ou antigas
que consigam abalar o throno de ouro de divino Bom Jesus; não ha milagres que
escureçam a fama dos seus milagres, nem para os convalescentes, ligados por
promessas, ha ladeira mais suave de subir do que essa que em dous lanços conduz
ao adro do Bomfim. A cêra e os obulos de que se sustentam o culto, sejam quaes
fôrem as crises das finanças profanas, multiplicam-se como os pães da
Escriptura. A casa dos milagres já se
estende por duas salias da capella.
O officio annual é sempre rico e deslumbrante, mas, a
grande, a incomparavelesta é cá nos fóras, ao ar livre. Reprimida a licença da lavagem, este povo tão interessante na mani
festação da sua religiosidade quanto engenhoso no prazer, instituiu a ‘‘Segunda-feira
do Bomfim’’, que é um supplemento á semana festiva. Paralysa-se o commercio. Fecham-se
officinas, amortece a actividade nas fabricas, os jornaes apressam ou supprimem
as tiragens, a criadagem deserta a casa dos amos, a cidade inteira cahe num
silencio de tapéra ... É a ‘‘Segunda-feira’’. todo o movimento, toda a vida bahiana se desloca para o
arrabalde com a sua alegria atroadora. A companhia Carris Electricos foi uma obra da Providencia. As legiões da folia
marcham e contra-marcham revolvendo a poeira de Itapagipe, banqueteando-se nas
ruas; ha musicatas, violões, modinhas, sambas, concertos, côros ambulantes, uma
inferneira. Cada anno a musa da jogralidade rebenta em novas e desopilantes
producções. Ha uns dous annos cantou-se no Bomfim, e depois na Bahia inteira,
uma especie de aria burlesca muito expressiva. Depois de uma quadrinha qualquer
disparatada, vinham alguns disticos neste gosto:
Macaco tua mãe tem rabo:
É o diabo, é o diabo.
Macaco, tua mãe é morta,
Eu que me emporta, eu que me emporta.
Macaco tua mãe morreu;
Antes ella do que eu.
Ao findar a serie respondia o côro:
Ai! ai! ai!
Eu não era assim.
Foi cousa que me fizeram
Segunda-feira do Bomfim.
Rezam as chronicas da cidade que no governo do vice-rei
conde de Atouguia, o capitão de mar e guerra Theodosio Rodrigues de Faria,
sendo grande devoto do Senhor Crucificado, que veneram em uma capellinha nas proximidades
de Setubal em Portugal, trouxe de Lisbôa para aqui uma imagem do Senhor, feita
pelo modelo e á semelhança d’aquella.
Corria o anno de 1745, e era o Arcebispo da Bahia D. José
Botelho de Mattos, quando pela Paschoa da Ressurreição foi a imagem collocada
na egreja de Nossa Senhora da Penha, em Itapagipe. O acto revestiu-se de
solemnidade e pompa, e as multidões começaram a peregrinar para a Penha,
afervorando a devoção.
Havia o capitão de mar e guerra promettido edificar um templo
consagrado ao seu Crucificado, e não descançou. O sitio escolhido foi essa
graciosa collina que tantas gerações de romeiros têm perlustrado ha cento e cincoenta
annos. Cerca de um decennio depois de iniciada a devoção na Penha erigia-se n’aquetle
cimo a capella do Senhor do Bomfim, sendo a imagem para lá conduzida
processional mente em 24 de Junho de 1754. Occorridos tres annos fallecia
Theodosio Rodrigues de Faria, cujos despojos tiveram sepultura rasa junto ao
presbyterioda capella.
A orientação do edificio obedece ao typo classico: “abre
onde se põe o sol e corre contra o nascente, segundo a postura das egrejas
antigas’’. Do seu adro goza-se o mais bello panorama da cidade e da bahia.
Os mais importantes melhoramentos que tem recebido desde a
sua fundação foram: as pinturas do tecto e dos paineis dos altares, onde o
artista Franco Velasco representou os passos da Paixão; os quadros da sacristia
e dos corredores sobre themas da Escriptura, trabalho de outro pintor bahiano, José Theophilo de Jesus; os dous vastos paineis
de Bento Capinam á entrada da capella, representando a ‘‘morte do justo”; a
construcção dos corredores, que foram antigamente alpendres ; e o chafariz de
marmore Carrara, a pouca distancia do adro, encimado pela estatua do Salvador.
Estas ultimas obras, e outras externas, como a reforma do
calçamento e o parque, foram promovidas pelos Drs. Freire de Carvalho, pae e
filho, que se têm succedido na mesa e thesouraria da irmandade, zelando essa devoção
tradicional dos seus avós.
Bahia— 1905.
XAVIER MARQUES.
In: Revista do Instituto Geographico e HIstorico da Bahia. Anno XXVII, Nº 46, Bahia, Imprensa Oficial do Estado, Rua da Misericordia, n. 1, 1920, p. 159-163.
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