quarta-feira, 6 de abril de 2016

UMA TRADIÇÃO RELIGIOSA NA BAHIA - O culto do Senhor do Bomfim

O culto do Senhor do Bomfim, uma das mais vivazes tradições do Brasil, basta por si só para documentar a maneira como o povo bahiano entretêm as suas relações com o divino e cultiva as suas crenças catholicas.

Já estamos, é verdade, um pouco longe dos pomposos oitavarios em que o bairro do Bomfim, e toda a peninsula por elle dominada, se povoavam de caravanas vindas do Reconcavo, dos altos Sertões da provincia e d’além do S. Francisco, para tomarem parte na representação do estupendo martyrio que tinha por theatro a airosa collina de Itapagipe. Ainda em 1881 podia escrever, sem exagero, um chronista local: “Acódem á importante festa do Senhor do Bomfim, a primeira da Bahia e talvez de todo o Brasil, mais de 30 mii pessoas de todas as classes da sociedade e de toda parte”.

Hoje o sertanejo contenta a fé, indo mais perto dos seus campos geraes e das suas serras, á gruta do Bom Jesus da Lapa. O habitante da matta e dos Engenhos vae ao santuario de Nossa Senhora das Candeias, a Lourdes bahiana. As peregrinações de Itapagipe diminuiram de volume; as casas dos romeiros, as que restam de pé, já se alugam a familias da capital para estações de verão e mudança de ares.

O programma da festividade externa tambem soffreu modificações que a grande massa dos crentes não approvou, mas a que afinal se resignou, coagida pelas reiteradas prohibições ecclesiasticas, a que todavia foi preciso o reforço da policia armada.

Na quinta-feira da oitava do Bomfim era costume antigo da plebe fazer a lavagem do templo. Essa lavagem, á parte sua intenção inicial, excedia tudo quanto no correr de 1534, interdizia n’estes tenuos o bispo de Evora:

“Defendemos a todas as pessoas ecelesiasticas e populares, de qualquer estado ou condição que sejam, que não comam nas egrejas, nem bebam, com mesas nem em mesas; nem cantem, nem bailem em ellas, nem em seus adros, nem os leigos façam seus ajuntamentos dentro d’eIlas sobre coisas profanas; nem se façam nas ditas egrejas ou adros d’ellas jogos alguns, posto que sejam em Vigilia de Santos ou de alguma festa, nem representações, ainda que sejam da paixão de Nosso Senhor Jesus Christo ou de sua Ressurreição, ou nascença, de dia nem de noite, sem nossa especial licença, porque de taes actos se seguem muitos inconvenientes, e muitas vezes trazem o escandalo no coração d’aquelles que não estão mui firmes na nossa Santa fé catholica, vendo as desordens e excessos que nisto se fazem”.

A “lavagem do Bomfim”, tantas vezes suspeitada de africanismo e selvagismo, tem, como se vé, os seus antecedentes ou, pelo menos, os seus precedentes historicos na velha e civilisada metropole portugueza. Era, na verdade, um pandemonium ás portas do céu, uma assombrosa bambochata, cujas liberdades com o sagrado chegaram ao delirio da irreverencia. E perdem-se por isso aquelle pittoresco e eloquentissimo quadro vivo de costumes.

Quem se não recorda na Bahia dos longos sequitos de aguadeiros e carroceiros, a guiar cavallos enramados com folhagem de pitanga e barulhentas carroças atacadas de lenha, pela Calçada do Bomfim até o adro da egreja, onde já tripudiavam creoulas e mulatas, gente de todas as castas e matizes, com a bateria de tinas, bacias, esfregões e vassouras? Quem a viu, que a esquecesse, aquella extraordinaria festa d’agua e alcool, aquelle enorme disparate de bemditos e chulas, de rezas e gargalhadas, de gestos contrictos, e bamboleios deshonestos? A Venus hottentote lá exhibia as suas opulencias carnaes e os seus rebolados de dançarina; os ranchos de aguadeiros despejavam os barris e sambavam com garganteios estentoreos. Soavam bacias como sinos rachados; o estrepito das palmas formava um rnatraquear ensurdecedor. Num mesmo instante joelhos que se dobravam deante dos altares estiravam-se agilmente nos passos e voltas do mais atrevido fandango. Emquanto as vassouras chapinhavam nas lages da nave, olhares caprinos incendiados em chammas alcoolicas, devoravam collos negros e infantes, onde as contas do rosario vibravam como guizos de mascarados.
Não faltavam ao espectaculo nem as gaiatices do espirituoso capadocio, nem musicas apropriadas ao tom da colossal pagodeira.

O excesso provocou a hostilidade systematica do clero e da imprensa. Mas tiveram que suar o topete antes que a lavagem, se curasse dos seus desatinos e loucuras de Entrudo. Annos houve em que as portas da capella, trancadas por ordem superior, escancaravam-se momentaneamente, e como por encanto, á invasão das hordas devotas. E o diluvio repetia-se.

É assim que se expande o catholicismo do mestiço bahiano: a sua religião não dispensa, por nenhuma consideração, o apparato e o estrondo carnavalesco. Elle crê e ora, ouve missa e communga, mas não faz voto de renunciar o rico prazer de dar vivas ao Santo, como os dá ao carro do caboclo em 2 de Julho e ao estandarte dos Fantoches e do Cruz Vermelha. Murmurou-se muito, aqui ha tempos, contra certas medidas restrictivas tomadas pela autoridade archiepiscopal acerca das procissões, e contra a ordem, emanada do mesmo poder, que vedou ás philarmonicas e bandas marciaes tocarem no recinto das egrejas. Tudo isso é necessario, é indispensavel ao temperamento religioso deste alegre povo. Com elle perdem o seu tempo os zelosos pastores evangelicos que tanto se afadigam por attrahil-o ás ceremonias frias, simplissimas e severas das suas seitas protestantes.

O bahiano quer entrar no céo, mas com alardo e fanfarra.

A festa do Bomfim continúa a congregar no formoso bairro a maior massa de gente que para essas devoções costuma arrojar-se de fóra e dentro da cidade. Ou porque o Senhor d’aquelle outeiro lhe prodigalisa mais graças, ou porque o outeiro onde se eleva a casa do Senhor offereça campo mais propicio aos folguedos do povo, nesta terra de tantas egrejas, ha seculo e meio, tem logrado intensa popularidade. - Não ha invocações novas ou antigas que consigam abalar o throno de ouro de divino Bom Jesus; não ha milagres que escureçam a fama dos seus milagres, nem para os convalescentes, ligados por promessas, ha ladeira mais suave de subir do que essa que em dous lanços conduz ao adro do Bomfim. A cêra e os obulos de que se sustentam o culto, sejam quaes fôrem as crises das finanças profanas, multiplicam-se como os pães da Escriptura. A casa dos milagres já se estende por duas salias da capella.

O officio annual é sempre rico e deslumbrante, mas, a grande, a incomparavelesta é cá nos fóras, ao ar livre. Reprimida a licença da lavagem, este povo tão interessante na mani festação da sua religiosidade quanto engenhoso no prazer, instituiu a ‘‘Segunda-feira do Bomfim’’, que é um supplemento á semana festiva. Paralysa-se o commercio. Fecham-se officinas, amortece a actividade nas fabricas, os jornaes apressam ou supprimem as tiragens, a criadagem deserta a casa dos amos, a cidade inteira cahe num silencio de tapéra ... É a ‘‘Segunda-feira’’. todo o movimento,  toda a vida bahiana se desloca para o arrabalde com a sua alegria atroadora. A companhia Carris Electricos foi uma obra da Providencia. As legiões da folia marcham e contra-marcham revolvendo a poeira de Itapagipe, banqueteando-se nas ruas; ha musicatas, violões, modinhas, sambas, concertos, côros ambulantes, uma inferneira. Cada anno a musa da jogralidade rebenta em novas e desopilantes producções. Ha uns dous annos cantou-se no Bomfim, e depois na Bahia inteira, uma especie de aria burlesca muito expressiva. Depois de uma quadrinha qualquer disparatada, vinham alguns disticos neste gosto:

Macaco tua mãe tem rabo:
É o diabo, é o diabo.

Macaco, tua mãe é morta,
Eu que me emporta, eu que me emporta.

Macaco tua mãe morreu;
Antes ella do que eu.

Ao findar a serie respondia o côro:

Ai! ai! ai!
Eu não era assim.
Foi cousa que me fizeram
Segunda-feira do Bomfim.

Rezam as chronicas da cidade que no governo do vice-rei conde de Atouguia, o capitão de mar e guerra Theodosio Rodrigues de Faria, sendo grande devoto do Senhor Crucificado, que veneram em uma capellinha nas proximidades de Setubal em Portugal, trouxe de Lisbôa para aqui uma imagem do Senhor, feita pelo modelo e á semelhança d’aquella.

Corria o anno de 1745, e era o Arcebispo da Bahia D. José Botelho de Mattos, quando pela Paschoa da Ressurreição foi a imagem collocada na egreja de Nossa Senhora da Penha, em Itapagipe. O acto revestiu-se de solemnidade e pompa, e as multidões começaram a peregrinar para a Penha, afervorando a devoção.

Havia o capitão de mar e guerra promettido edificar um templo consagrado ao seu Crucificado, e não descançou. O sitio escolhido foi essa graciosa collina que tantas gerações de romeiros têm perlustrado ha cento e cincoenta annos. Cerca de um decennio depois de iniciada a devoção na Penha erigia-se n’aquetle cimo a capella do Senhor do Bomfim, sendo a imagem para lá conduzida processional mente em 24 de Junho de 1754. Occorridos tres annos fallecia Theodosio Rodrigues de Faria, cujos despojos tiveram sepultura rasa junto ao presbyterioda capella.

A orientação do edificio obedece ao typo classico: “abre onde se põe o sol e corre contra o nascente, segundo a postura das egrejas antigas’’. Do seu adro goza-se o mais bello panorama da cidade e da bahia.

Os mais importantes melhoramentos que tem recebido desde a sua fundação foram: as pinturas do tecto e dos paineis dos altares, onde o artista Franco Velasco representou os passos da Paixão; os quadros da sacristia e dos corredores sobre themas da Escriptura, trabalho de outro pintor bahiano,  José Theophilo de Jesus; os dous vastos paineis de Bento Capinam á entrada da capella, representando a ‘‘morte do justo”; a construcção dos corredores, que foram antigamente alpendres ; e o chafariz de marmore Carrara, a pouca distancia do adro, encimado pela estatua do Salvador.

Estas ultimas obras, e outras externas, como a reforma do calçamento e o parque, foram promovidas pelos Drs. Freire de Carvalho, pae e filho, que se têm succedido na mesa e thesouraria da irmandade, zelando essa devoção tradicional dos seus avós.

Bahia— 1905.


XAVIER MARQUES.

In: Revista do Instituto Geographico e HIstorico da Bahia. Anno XXVII, Nº 46, Bahia, Imprensa Oficial do Estado, Rua da Misericordia, n. 1, 1920, p. 159-163.

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