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Ano da Redenção do mundo de 1711.
Demandava a barra de Todos os Santos um navio de comercio do qual era
capitão e proprietário encanecido marujo, castelhano de nacionalidade. Pedro
Goncalves, assim se chamava. Ao demais fervoroso católico, e senhor de pingues
haveres.
Rija Tempestade desencadeara-se, cavando na face do oceano profundos
vales,e solevando engrimpadas colinas franjadas de espuma. O mar, escabujando
em desmedida furia, agora arrastava a nau para os sorvedouros hiantes, e logo
impelia para o fastígio dos vergalhões tremendos, como se fôra leve jangada.
Debalde o experimentado mauta aproava o seu baixel para o canal que
levaria ao interior do golfão, escapando assim à cólera da tormenta. O leme,
porem, não fazia mais o seu ofício. O marouço baldeava-lhe o convez de popa á
proa, de estibordo a bombordo, arrancando as obras mortas, varrendo tudo quanto
nas suas impetuosos rajadas ia topando.
Estava perdido! As ondas desenfreadas atiravam-no para cima de
enrocados parcéis, jacentes cerca do fortim de Santo Antonio. Se, porem, à
embarcação faltava o leme e as velas, ao capitão a fé em Deus não faltava, e,
rendido de joelhos, mãos postas e olhos ao alto, invocou a proteção do
milagroso santo do seu nome. Que intercedesse ao Senhor, por si e pelos seus
companheiros em tão doloroso transe.
Assim deprecava os céos, quando pêla proa do desgovernado navio,
agitando-se nas aguas convulsionadas, diviza um frade da sagrada religião de
São Domingos, tendo à dextra um círio aceso. Sem raciocinar um momento siquer sobre
a incongruência do que via, deliberou imediatamente socorrer o dominicano, êle
que a salvação da própria vida tinha tão duvidosa áquele instante para o que,
empregando a fatigada tripulação audaciosos esforços fez arriar um bote, no
qual se meteu. Assim que a pequena embarcação tocou a crista das vagas, a
borrasca amainou repentinamente, ao tempo em que o frade desaparecia como por
encanto.
Reconhecendo então o milagre que o seu bem-aventurado homônimo operara,
êle e toda a maruja, tomados do mais radiante júblio, genuflectiram sobre a
coberta, dando graças ao Altíssimo pêla mercê das próprias vidas, que por
intercessão do seu glorioso servo São Frei Pedro Gonçalves lhes fizera. Não foi
menor a surpresa, nem menos intensa a alegria de que se possuíram os
navegantes, vendo a desmantelada embarcação, misteriosamente propelida, ir dar
ao litoral da cidade, nas proximidades da igreja matriz da Conceição a Praia.
Desembarcou o velho nauta no mesmo sitio, e foi ter ao casebre de uma
velha africana, comprando-lhe o terreno que ocupava. Conseguida a indispensável
licença do diocesano, meteu ombros á fábrica de uma ermida votada ao santo
dominicano, e no espaço de curtos meses, - tanta diligência pusera na obra, -
seu vulto, com uma vela acesa à mão, segundo o vira pordavante da sua nave a soçobrar,
erguia-se no altar. Além do valioso patrimônio que para manutenção do culto
instituiu, vinculou mais à capelinha grande extensão de marinhas, obtidas em
sesmaria do governador da colônia.
No frontispício do pequeno templo votivo gravou Pedro Gonçalves os
algarismos da éra do milagre e da construção; e na proa do navio, reparadas as
injúrias do vendaval, fez insculpir o venerando simulacro do seu bemventuro compatrício.
Por largos anos foi a igrejinha termo de devotas peregrinações de
marinheiros que, acossados pelas tempestades, recorriam cheios de fé á
intervenção do milagrosos santo, por cujo favor viam salvas as vidas do abismo
pelágico, indo por fim, sob céo bonavençoso, largar as ancoras nas águas
quietas da imcomparavel bahia.
Ahi está como explica a lenda (inserta na Memória sobre o Estado da
Bahia, de Francisco Vicente Viana) a fundação da capela do Corpo santo, que
muita gente supõe dedicada a São José, e que, de 1736 a 1756, enquanto se construía
a actual igreja da Conceição da Praia, serviu de matriz da freguesia, sendo
remodelada em 1903 pelo intendente Freire de Carvalho.
Segundo li no curioso trabalho de J. Teixeira Barros, Epigrafia bahiana
(in Revista do Instituto Geográfico e Histórico da Bahia, no. 51), o cronograma
1711, que aparecia na fachada da pristina capela, memorava a administração de
João Gomes Ribeiro Vianense, seu fabriqueiro, ou coisa semelhante. Donde se
infere ser a construção anterior àquela data, contrariando assim a lenda, que
vae sofrer mais a seguinte contestação. O terreno em que se elevou a igrejinha
pertencia naquele tempo à família Cavalcanti d’Albuquerque, havendo sido
primitivamente de Tomé de Souza, fundador da Bahia, e, pois, o capitão do navio
não podia tel-o comprado á africana; nem obtido sesmarias na marinha da cidade,
que de há muito já estava toda sesmada, da Ponta do Padrão á de Monserrate.
Perguntar-me-ão: Porque igreja do Corpo Santo, e não de São Pedro
Gonçalves, se este é o seu padroeiro? Abro, para lhes responder, o Ano Cristão,
do jesuíta francez padre Croiset, obra em quinze volumes, traduzida e ampliada
pelo padre Matos Soares, professor do Seminário do Pôrto, e, nas comemorações do
dia 15 de abril encontro menção a São Pedro Gonçalves Telmo. Este e São Frei
Gil de Santarém, o lendário frade portuguez, tido vulgarmente por nigromante,
são os dois únicos bem-aventurados, ambos dominicanos, que passaram á
posteridade com o seu designativo de sacerdote regular junto ao de eleito do
Senhor.
Diz o Ano Cristão:
“Este santo tem o seu nome estreitamente ligado á nossa aventura marítima,
pêla devoção que lhe tinham os marinheiros que das praias lusitadas se faziam
ao mar imenso, em demanda das terras da India ou de Santa Cruz. Quando a
tormenta uivava, vergando as enxárcias da nau gemente, a tripulação invocava o
seu patrono, clamando: Sant’Elmo! Sant’Elmo”
Dahi o chamar-se ainda hoje fogo de Sant’Elmo, ou simplesmente
santelmo, á chama azulada que, quando está iminente a tormenta, fosforeja na
extremidade dos mastros ou das vergas das embarcações. É esta a origem de se
chamar popularmente ao nosso bem-aventurado – Corpo Santo, porque, quando via a
lucilação elétrica, a marinhagem, na sua simplicidade, julgava que era o
próprio santo que vinha socorrel-a, e clamava alvoroçada de esperança: - Corpo
Santo! Corpo Santo!
Pode-se conjecturar o seguinte, relativamente á fundação da capelinha
em apreço, desaceitando por completo a tradição. Pôrto frequentadíssimo era o
nosso, desde o nascimento da cidade, não só pelas embarcações que do Reino o
buscavam por ponto final da sua navegação, mas também dos que arribavam, ou
escalavam em direitura ou retorno do Rio de Janeiro, Santos, Ilha de Santa
Catarina, Rio da Prata, portos do Mar Pacifico, costas oriental e ocidental de
África, India, China, Molucas e Japão, era mui natural que a gente do mar
houvesse construído a igrejinha, dedicando-a ao santo, - extraordinariamente
venerado pelos marujos portugueses, segundo vimos, como também pelos castelhanos,
e que sempre foi representado com uma vela acesa á mão direita, - para lhe
agradecer os favores recebidos, ou suplical-os, independentemente do milagre
supra. Ainda mais, o inventor da lenda, ignorando ser o santo invocado pelos marujos
nos seus momentos de angustia, faz o capitão seu devoto, parece, por amor da
identidade dos nomes, e não como patrono dos navegantes.
Também no Recife houve uma igreja do Corpo Santo, hoje demolida, no
bairro comercial, e que já existia por ocasião da conquista holandeza, em 1630.
Eu penso que a nossa não é muito mais nova. Em todas as povoações marítimas de
Portugal existiam confrarias de Santo Elmo.
São Frei Gonçalves Telmo, castelhano, aparentado da família Teles de
Menezes, viveu nos séculos XII e XIII, sendo tio do lendário São Gonçalo de
Amarante, tão venerado aqui na Bahia, em dias passados.
Para concluir, uma fábula sinonímica do fogo elétrico, além dos termos
Santelmo, Fogo de Sant’Elmo e Corpo Santo que já mencionei. É esta: - Helena,
Fogo de Santa Helena, Hermes, Fogo de Hermes, Fogo de São Pedro e Fogo de São
Nicolau ( O “sacro Nicolau” de Camões [Os Lusiadas, canto V, LXXIV], também considerado
patrono dos marinheiros. Como Santo Erasmo). Isso não se encontra em obra rara,
ou de difícil consulta, Não. Vem simplesmente na terceira edição do dicionário
de Candido Figueiredo.
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