quinta-feira, 17 de maio de 2018

Capela do Corpo Santo

Foto: Marcel Gautherot 1952. Acervo IPHAN.

Há a lenda e há história… E como sempre acontece, a segunda acaba, cientificamente, vencendo os erros e exageros da primeira. A lenda é tragédia e é milagre…

” Corria o ano 1711. O mar beijava a fralda da montanha sobre que está a Bahia sobre que está a Bahia e a religião dominava os povos e os indivíduos. O espanhol Pedro Gonçalves – era um homónimo do piedoso santo…” – “capitão de um navio e dono de grande fortuna lutava perto da barra da Bahia de Todos os Santos, em seu galeão contra a fúria de horrorosa tempestade.

Já desenganado de vencer os elementos, no transporte do desespero e, ao mesmo tempo iluminado da Fé, antes de render-se, ajoelha-se sobre a tolda de seu galeão, de que para sempre se ia desligar e exclama em seu auxilio o nome de São Pedro Gonçalves. E de momento vê a proa da embarcação, um monge dominicano que parecia prestes a ser tragado pelas ondas, trazendo uma vela acesa na dextra. Esquecendo-se de sua situação e compadecido daquele que se lhe afigurava vítima das ondas, lança-se-lhe o velho marinheiro, para salva-lo no bote, mas... o religioso tinha desaparecido e, com ele, a tempestade! Reconhecendo, então, o milagre, ajoelha-se Pedro Gonçalves, na tolda do seu galeão, com toda a tripulação a render graças ao Senhor dos Ventos e dos Mares; e saindo desse estado de consolada alegria, vê com grande surpresa que o seu baixel, desarvorado na luta, abicava à praia.

Desce a terra e dirigindo-se a uma cabana coberta de palha, habitação de uma preta velha africana, entra com esta em negociações e dentro em pouco, sem mais formalidades, lhe é trespassado o domínio daquela propriedade. Dias depois reúnem-se ali alguns operários; pouco tempo mais tarde acha-se pronta a Igreja, que recebe uma Imagem de São Pedro Gonçalves tendo na mão direita uma vela acesa como fora visto pelo marinheiro, que no frontal da capela mandou escrever a data daquele prodigioso acontecimento e esculpir a imagem daquele patrono em um navio.

Em seguida, dotou a Igreja e alcançou dos Governadores grandes extensões de marinhas para engrossar o patrimônio da mesma”. E, completa Vicente Viana onde encontramos a lenda: “Essas terras eram propriedade da família Cavalcanti de Albuquerque, herdada de Tomé de Souza que fundou a próxima igreja da Conceição da Praia, elevada a freguesia em 1623. A Capela do Corpo Santo, de 1736 a 1765 serviu de matriz durante a edificação do atual templo da Conceição”.

Ora, a lenda de São Pedro Gonçalves ou Corpo Santo tem imemorial origem identificando-se com superstições de homens de mar e crendices de pagãos. Vejamos, por imparcial, a lição de um culto sacerdote e escritor do século XVIII: “Corpo Santo é um termo dos homens do mar. É a exalação luminosa que os meteorologistas chamam Castor e Pollux. De ordinário aparece esta exalação sobre os mastros e outras partes do navio e os marinheiros imaginam que esta luz é o Corpo do seu advogado São Pedro Gonçalves que os vem consolar e por isso gritam – SALVE, SALVE, SALVE, O CORPO SANTO".

E, continua o sábio Bluteau: “Castor e Pollux" -- é uma espécie de meteoro, a modo de fogo errante, labareda e estrela volátil, que nas grandes tormentas costuma aparecer sobre os mastros ou outras partes das naus. Chamaram-lhe 'Castor e Pellux porque dizem que sobre as cabeças destes dois irmãos aparecera esta luz, na célebre nau dos Argonautas, que navegava para a Colchida. Faz Hygino menção desse sucesso, fabula 14, intitulada, – “Argonautae  convocati” – dizendo -“Castor te Pellux Jovis Ledae accidisse scubiter. A isto acrescentaram outros autores que logo depois de aparecer esta luminosa exalação cessara a tormenta o que moveu os mareantes a terem estes irmãos em tanta veneração que ornavam com suas figuras, os seus navios e os invocavam como Deuses do Mar. Escreveu Plinio que essa luz se chamava Stella Castoris".

E a crença pagã encontrou um dia, acolhida dos cristãos… Passou essa superstição gentílica “a uma notável devoção que uns mareantes têm a São Helmo ou Telmo, ou a São Pedro ou a São Nicolau, como os pilotos italianos e outros, particularmente os portugueses a São Pedro Gonçalves, seu advogado nas Tormentas, crendo que, nas ditas exalações, que correm pelas vergas e mastros em tempos procelosos, é o Santo que os vem visitar e consolar…”

Curioso: “e afirmam que, quando aparecem nas partes altas, duas, ou três ou mais daquelas exalações, que é final, que é final, que lhes dá bonança; mas se aparece uma só, pelas partes inferiores, anuncia naufrágio; e tão crentes estão nisso que, quando aquelas exalações aparecem sobre os mastereus sobem os marinehiros acima e afirmam que acham pingos de cera verde mas (adverte Diogo de Couto) eles nem os trazem nem os mostram”.

E a explicação: “Deixadas estas e outras superstições e observações supersticiosas a razão física do feliz pressagio destas luzes, segundo Estevam Chauvin, é que a liberdade que logram é indicio de que as nuvens que carregam sobre elas, se desfizeram e que se vai abrindo o Céu para restituir a serenidade aos ares, e ao mar, a bonança. . .”

Santo Elmo contraiu-se em Santelmo e Diogo de Couto, nas “Décadas”, diz Santo Anselmo. A Bluteau, porém, pareceu mais provável “a derivação que lhe da Cabarrublas no seu “Tesouro" dizendo que SANTELMO vale o mesmo que Santo Erasmo – abreviando Erasmo em Ermo e corrompendo Ermo em Elmo. E juntamente diz que houve dois santos desse nome, São Erasmo, bispo e mártir em Capania, cuja festa se celebra a 2 de junho; e S. Erasmo, mártir em Antioquia, cuja festa se celebra a 25 de novembro". E, adiante. “Qual destes dois Santos Erasmos seja o que invocam os mareantes, quando chamam por SANTELMO, não é fácil averiguar, tanto mais que imagina o vulgo dos mareantes que Santelmo é o próprio nome do Santo que invocam.

E, em varias partes da Espanha, particularmente em Guiposcoa, Biscaia, e na cidade de Tuy, em Galiza, os Pilotos e marinheiros celebram com grande solenidade a festa do dito Santo que tomaram por seu protetor e defensor nas tormentas". Adverte ainda Diogo de Couto que “naquela luminosa exalação veneram os mareantes portugueses a São Pedro Gonçalves, acudindo todos ao convés a salva-lo e dizendo com grandes gritos: SALVE,SALVE, o CORPO SANTO – e nessa mesma luz veneram os mareantes estrangeiros e Santelmo”.

A “exalação” tem a sua explicação cientifica: fogo fatuo, fogo de Santelmo, penhacho luminoso que devido a eletricidade atmosférica aparece nas extremidades dos mastros e das vergas dos navios ou nos filamentos dos cabos; “feu follet, dú a l'electricité atmospherique, apparaissant parfois la nuit, par temps sombre ou oraguex, aux extrémités des mats ou des vergues d`un navire”.

Identificaram-se, também os mareantes da Bahia Colonial, com o culto a São Pedro Gonçalves ou Corpo Santo. E, cabe, agora, retificar a lenda ao fazer de 1711, a origem da piedosa invocação numa ermida da praia da cidade.

Em recente trabalho, que lemos no Instituto Histórico, sobre a fortaleza que foi devida em hasta pública – a de Santo Alberto, primeira desse nome -- vimos que, pelo menos em 1673, quando ocorreu aquele evento, é constantemente citada a Igreja do Corpo Santo, bem perto do propugnáculo transformado por Domingos Pires de Carvalho em trapiche. E, recuando, daquela data, quarenta e três anos, revelam os documentos, que já em 1630, a cidade tinha, a sua Confraria do Corpo Santo. Numa escritura de aforamento, de sete de Outubro daquele ano, é a Confraria outorgante de sessenta e dois palmos e meios de chãos – entre os mais que lhe pertenciam, – sitos nesta cidade, “ao longo da rua e caminho que vai dos Guindastes para a Ladeira, para a Praia, a banda do poente da dita rua, e partem da banda do Norte com chãos de Estevão de Brito Freire; e do sul com Pedro Gonçalves de Mattos; e do nascente com a dita rua pública e caminho que vai dos ditos Guindastes da praça para a praia e chegam até o meio da ladeira, da banda do poente e do mar e partem pelas ditas confrontações”, ao cidadão Antonio Fernandes. Eram então, dentre outros, mordomos e oficiais da Confraria, Diogo Lopes de Ulhoa, o capitão Francisco Fernandes e Diogo de Leão…

Antonio Fernandes, foreiro dos chãos “que estão indo para a praia junto ao guindaste novo de Pedro Gonçalves de Mattos” desejou arruar… A 19 de novembro de 1632 o Procurador da Câmara Tomaz Pires e o medidor da Cidade, Manuel Giz, compareceram ao dito sitio para cumprir o requerido “deixando a rua junto ao Guindaste de 28 palmos: e da outra banda de 29". Ao morrer em 1649 declarou em testamento seu herdeiro universal, ao Mosteiro de São Bento, com a obrigação “de medirem húa capela todos os annos", dos rendimentos da Casa que deixara.

Num auto de posse de 2 de dezembro de 1648 identificamos as casas pertencentes ao Padre Frei Hyacinto, que as herdou de seu pai, Diogo João Preto - “casas que são as do canto da banda do Corpo Santo".

Claro, pois, que a Igreja do Corpo Santo e também a sua Irmandade não nasceram em 1711, como deseja o relato lendario citado.

Quanto ao Pedro Gonçalves, que recebeu no momento do perigo a assistência do seu piedoso orago, e é dado como iniciador da Capela ainda hoje mesmo mutilada, existente, homem poderoso e influente, poderia ser identificado com esse, de 1630, proprietário do Guindaste novo, por extenso, Pedro Gonçalves de Matos?


Luiz Monteiro da Costa
O Hospital Marítimo e a Confraria do Corpo Santo.
In: Revista do Instituto Geográfico e Histórica da Bahia, nº 86, 1976/77, p. 27-39.

Fachada posterior da capela que fica de costas para o mar,
perto do Elevador Lacerda, na entrada do Bairro do Comércio.
Foto: Marcel Gautherot 1952. Acervo IPHAN.
Cristo, oleogravura de Conegliano -
comuna italiana da região do Vêneto, província de Treviso.
Foto: Edgard Antunes 1951. Acervo IPHAN

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