Foto: Marcel Gautherot 1952. Acervo IPHAN. |
Há a lenda e há história… E como
sempre acontece, a segunda acaba, cientificamente, vencendo os erros e exageros
da primeira. A lenda é tragédia e é milagre…
” Corria o ano 1711. O mar beijava
a fralda da montanha sobre que está a Bahia sobre que está a Bahia e a religião
dominava os povos e os indivíduos. O espanhol Pedro Gonçalves – era um homónimo
do piedoso santo…” – “capitão de um navio e dono de grande fortuna lutava perto
da barra da Bahia de Todos os Santos, em seu galeão contra a fúria de horrorosa
tempestade.
Já desenganado de vencer os
elementos, no transporte do desespero e, ao mesmo tempo iluminado da Fé, antes
de render-se, ajoelha-se sobre a tolda de seu galeão, de que para sempre se ia
desligar e exclama em seu auxilio o nome de São Pedro Gonçalves. E de momento
vê a proa da embarcação, um monge dominicano que parecia prestes a ser tragado
pelas ondas, trazendo uma vela acesa na dextra. Esquecendo-se de sua situação e
compadecido daquele que se lhe afigurava vítima das ondas, lança-se-lhe o velho
marinheiro, para salva-lo no bote, mas... o religioso tinha desaparecido e, com
ele, a tempestade! Reconhecendo, então, o milagre, ajoelha-se Pedro Gonçalves,
na tolda do seu galeão, com toda a tripulação a render graças ao Senhor dos
Ventos e dos Mares; e saindo desse estado de consolada alegria, vê com grande
surpresa que o seu baixel, desarvorado na luta, abicava à praia.
Desce a terra e dirigindo-se a
uma cabana coberta de palha, habitação de uma preta velha africana, entra com
esta em negociações e dentro em pouco, sem mais formalidades, lhe é trespassado
o domínio daquela propriedade. Dias depois reúnem-se ali alguns operários;
pouco tempo mais tarde acha-se pronta a Igreja, que recebe uma Imagem de São
Pedro Gonçalves tendo na mão direita uma vela acesa como fora visto pelo
marinheiro, que no frontal da capela mandou escrever a data daquele prodigioso
acontecimento e esculpir a imagem daquele patrono em um navio.
Em seguida, dotou a Igreja e
alcançou dos Governadores grandes extensões de marinhas para engrossar o
patrimônio da mesma”. E, completa Vicente Viana onde encontramos a lenda: “Essas terras eram propriedade da
família Cavalcanti de Albuquerque, herdada de Tomé de Souza que fundou a
próxima igreja da Conceição da Praia, elevada a freguesia em 1623. A Capela do
Corpo Santo, de 1736 a 1765 serviu de matriz durante a edificação do atual
templo da Conceição”.
Ora, a lenda de São Pedro
Gonçalves ou Corpo Santo tem imemorial origem identificando-se com superstições
de homens de mar e crendices de pagãos. Vejamos, por imparcial, a lição de um
culto sacerdote e escritor do século XVIII: “Corpo Santo é um termo dos
homens do mar. É a exalação luminosa que os meteorologistas chamam Castor e
Pollux. De ordinário aparece esta exalação sobre os mastros e outras partes do navio
e os marinheiros imaginam que esta luz é o Corpo do seu advogado São Pedro
Gonçalves que os vem consolar e por isso gritam – SALVE, SALVE, SALVE, O CORPO
SANTO".
E, continua o sábio Bluteau:
“Castor e Pollux" -- é uma espécie de meteoro, a modo de fogo errante,
labareda e estrela volátil, que nas grandes tormentas costuma aparecer sobre os
mastros ou outras partes das naus. Chamaram-lhe 'Castor e Pellux porque dizem
que sobre as cabeças destes dois irmãos aparecera esta luz, na célebre nau dos
Argonautas, que navegava para a Colchida. Faz Hygino menção desse sucesso, fabula
14, intitulada, – “Argonautae convocati”
– dizendo -“Castor te Pellux Jovis Ledae accidisse scubiter. A isto
acrescentaram outros autores que logo depois de aparecer esta luminosa exalação
cessara a tormenta o que moveu os mareantes a terem estes irmãos em tanta
veneração que ornavam com suas figuras, os seus navios e os invocavam como
Deuses do Mar. Escreveu Plinio que essa luz se chamava Stella Castoris".
E a crença pagã encontrou um dia,
acolhida dos cristãos… Passou essa superstição gentílica “a uma notável devoção
que uns mareantes têm a São Helmo ou Telmo, ou a São Pedro ou a São Nicolau,
como os pilotos italianos e outros, particularmente os portugueses a São Pedro
Gonçalves, seu advogado nas Tormentas, crendo que, nas ditas exalações, que
correm pelas vergas e mastros em tempos procelosos, é o Santo que os vem visitar
e consolar…”
Curioso: “e afirmam que, quando
aparecem nas partes altas, duas, ou três ou mais daquelas exalações, que é
final, que é final, que lhes dá bonança; mas se aparece uma só, pelas partes inferiores,
anuncia naufrágio; e tão crentes estão nisso que, quando aquelas exalações aparecem
sobre os mastereus sobem os marinehiros acima e afirmam que acham pingos de
cera verde mas (adverte Diogo de Couto) eles nem os trazem nem os mostram”.
E a explicação: “Deixadas estas e
outras superstições e observações supersticiosas a razão física do feliz pressagio
destas luzes, segundo Estevam Chauvin, é que a liberdade que logram é indicio
de que as nuvens que carregam sobre elas, se desfizeram e que se vai abrindo o
Céu para restituir a serenidade aos ares, e ao mar, a bonança. . .”
Santo Elmo contraiu-se em
Santelmo e Diogo de Couto, nas “Décadas”, diz Santo Anselmo. A Bluteau, porém,
pareceu mais provável “a derivação que lhe da Cabarrublas no seu “Tesouro"
dizendo que SANTELMO vale o mesmo que Santo Erasmo – abreviando Erasmo em Ermo
e corrompendo Ermo em Elmo. E juntamente diz que houve dois santos desse nome,
São Erasmo, bispo e mártir em Capania, cuja festa se celebra a 2 de junho; e S.
Erasmo, mártir em Antioquia, cuja festa se celebra a 25 de novembro". E,
adiante. “Qual destes dois Santos Erasmos seja o que invocam os mareantes,
quando chamam por SANTELMO, não é fácil averiguar, tanto mais que imagina o
vulgo dos mareantes que Santelmo é o próprio nome do Santo que invocam.
E, em varias partes da Espanha,
particularmente em Guiposcoa, Biscaia, e na cidade de Tuy, em Galiza, os
Pilotos e marinheiros celebram com grande solenidade a festa do dito Santo que
tomaram por seu protetor e defensor nas tormentas". Adverte ainda Diogo de
Couto que “naquela luminosa exalação veneram os mareantes portugueses a São
Pedro Gonçalves, acudindo todos ao convés a salva-lo e dizendo com grandes
gritos: SALVE,SALVE, o CORPO SANTO – e nessa mesma luz veneram os mareantes
estrangeiros e Santelmo”.
A “exalação” tem a sua explicação
cientifica: fogo fatuo, fogo de Santelmo, penhacho luminoso que devido a
eletricidade atmosférica aparece nas extremidades dos mastros e das vergas dos
navios ou nos filamentos dos cabos; “feu follet, dú a l'electricité
atmospherique, apparaissant parfois la nuit, par temps sombre ou oraguex, aux
extrémités des mats ou des vergues d`un navire”.
Identificaram-se, também os
mareantes da Bahia Colonial, com o culto a São Pedro Gonçalves ou Corpo Santo.
E, cabe, agora, retificar a lenda ao fazer de 1711, a origem da piedosa invocação
numa ermida da praia da cidade.
Em recente trabalho, que lemos no
Instituto Histórico, sobre a fortaleza que foi devida em hasta pública – a de
Santo Alberto, primeira desse nome -- vimos que, pelo menos em 1673, quando
ocorreu aquele evento, é constantemente citada a Igreja do Corpo Santo, bem
perto do propugnáculo transformado por Domingos Pires de Carvalho em trapiche.
E, recuando, daquela data, quarenta e três anos, revelam os documentos, que já
em 1630, a cidade tinha, a sua Confraria do Corpo Santo. Numa escritura de
aforamento, de sete de Outubro daquele ano, é a Confraria outorgante de
sessenta e dois palmos e meios de chãos – entre os mais que lhe pertenciam, – sitos
nesta cidade, “ao longo da rua e caminho que vai dos Guindastes para a Ladeira,
para a Praia, a banda do poente da dita rua, e partem da banda do Norte com
chãos de Estevão de Brito Freire; e do sul com Pedro Gonçalves de Mattos; e do
nascente com a dita rua pública e caminho que vai dos ditos Guindastes da praça
para a praia e chegam até o meio da ladeira, da banda do poente e do mar e
partem pelas ditas confrontações”, ao cidadão Antonio Fernandes. Eram então,
dentre outros, mordomos e oficiais da Confraria, Diogo Lopes de Ulhoa, o
capitão Francisco Fernandes e Diogo de Leão…
Antonio Fernandes, foreiro dos
chãos “que estão indo para a praia junto ao guindaste novo de Pedro Gonçalves
de Mattos” desejou arruar… A 19 de novembro de 1632 o Procurador da Câmara Tomaz
Pires e o medidor da Cidade, Manuel Giz, compareceram ao dito sitio para
cumprir o requerido “deixando a rua junto ao Guindaste de 28 palmos: e da outra
banda de 29". Ao morrer em 1649 declarou em testamento seu herdeiro universal,
ao Mosteiro de São Bento, com a obrigação “de medirem húa capela todos os
annos", dos rendimentos da Casa que deixara.
Num auto de posse de 2 de
dezembro de 1648 identificamos as casas pertencentes ao Padre Frei Hyacinto,
que as herdou de seu pai, Diogo João Preto - “casas que são as do canto da banda
do Corpo Santo".
Claro, pois, que a Igreja do
Corpo Santo e também a sua Irmandade não
nasceram em 1711, como deseja o relato lendario citado.
Quanto ao Pedro Gonçalves, que
recebeu no momento do perigo a assistência do seu piedoso orago, e é dado como
iniciador da Capela ainda hoje mesmo mutilada, existente, homem poderoso e
influente, poderia ser identificado com esse, de 1630, proprietário do
Guindaste novo, por extenso, Pedro Gonçalves de Matos?
Luiz Monteiro da Costa
O Hospital Marítimo e a Confraria do Corpo Santo.
In: Revista do Instituto Geográfico e Histórica da Bahia, nº 86, 1976/77, p. 27-39.
Fachada posterior da capela que fica de costas para o mar, perto do Elevador Lacerda, na entrada do Bairro do Comércio. Foto: Marcel Gautherot 1952. Acervo IPHAN. |
Cristo, oleogravura de Conegliano - comuna italiana da região do Vêneto, província de Treviso. Foto: Edgard Antunes 1951. Acervo IPHAN |
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